domingo, 29 de março de 2015

Pequeno Manual para Identificar Frescuras


Por André Falavigna



Vamos esclarecendo a coisa logo de cara: frescura e homossexualismo são duas coisas completamente distintas. Muitas vezes andam juntas, mas não se misturam necessariamente. Por exemplo: o sujeito que ler este parágrafo e acusar o termo “homossexualismo”, pedindo um “homossexualidade”, é, sem sombra de dúvida, fresco. Mas não precisa ser, por conta disso, homossexual, inclusive porque a burrice se distribui democraticamente entre todos os apetites sexuais conhecidos. Já a frescura não viceja a não ser em solo estúpido. Havendo burrice, poderá haver frescura. O homossexualismo não tem nada a ver com isso.

Ocorre que é difícil safar-se da frescura, porque ela, além de encontrar um ambiente adequado em quase todos os setores da atividade humana, tem características meio assim como as das trepadeiras. Vai se esticando e se enfiando em tudo quanto é buraco que aparece. Assim, a frescura que medra feliz pelos campos do jornalismo encontra-se, rápida e decidida, com a frescura que prospera sapeca pelas searas da medicina, só para ficar no exemplo que mais me vem à cabeça agora e que, mais tarde, voltará à baila neste mesmo texto. As redes de frescura vão então se ampliando e se imbricando umas nas outras, até o ponto em que todo o panorama do mundo visível é recoberto de frescura, frescura e mais frescura.

Por isso, urge criar alguns meios identificadores do que é frescura e do que não é, sob o risco de continuarmos recebendo e-mails com longas listas estúpidas enunciando bobagens a respeito do assunto. Outro dia, recebi um que dizia que se alguém conhece mais de não sei quantas cores, é porque é veado. Está claro que veado, aqui, é designação de fresco e não de homem que gosta de homem, coisa totalmente diversa. A confusão é clássica, mas não pode servir de desculpa. O importante é que há por aí uns tipos que estão desesperados, sufocados pela frescura reinante, e que acabam atirando para qualquer lado. Vamos estabelecer um ponto: conhecer cores, entender de vinhos, fumar charutos, identificar autores de quadros, gostar de teatro, ser alfabetizado, enfim, essas coisas todas, podem muito bem ser invadidas pela frescura, mas não são essencialmente frescuras. Eu sei que é muito difícil perceber quando o sujeito que gosta de cinema europeu é fresco e quando ele simplesmente viu filmes europeus de que gostou. É difícil porque temos que esperar o camarada dizer que “não assiste o circuitão comercial” para confirmar que, espiritualmente, ele é um sodomita dos mais ferozes. E é diante dessa dificuldade que me vejo obrigado a ensinar-lhes, por enquanto, apenas o básico de meu Manual de Identificação, Isolamento e Extermínio de Frescuras.

Não se preocupe em identificar as frescuras em si, no começo pelo menos. Identifique os frescos antes. Tudo o que um fresco faz, é frescura, mesmo que seja uma atividade típica de pessoas de bem (como a jogatina, por exemplo). Uma pessoa normal, quando viciada em jogo, vai ao carteado, no máximo a um vídeo-pôquer. O fresco vai ao Bingo e fica horas lá.

Um bom atalho é identificar os gostos esportivos do elemento a ser analisado. Se ele gostar de automobilismo e não for rico ou americano, tem grandes chances de ser uma bichona louca, no sentido moral da coisa. Vocês podem, inclusive, reparar no seguinte: quanto mais alternativa for a modalidade à qual o amigo for filiado, mas fácil é a identificação do, digamos assim, prurido típico que o acomete. Nesse sentido, os pendores pela Fórmula 01 estão até banalizados, ao passo que uma conversa sobre stock car, caso não envolva morte e mutilações, é caso perdido. Mesmo dentro do universo monolítico da frescura, há gradações. Se o “fã de esportes” gosta de Nelson Piquet, ainda passa. Se for daqueles que fica brava toda vez que alguém fala mal de Ayrton Senna, estejam certos: vocês estão diante de uma Rainha Mãe do cupinzeiro. Todo cuidado é pouco.

Os únicos esportes praticados no Brasil que se admitem numa conversa de pessoas normais são os seguintes: futebol, basquete, boxe, turfe, baralho, palitinho e dados. Em época de Olimpíada, admitem-se hipismo, atletismo e natação. Do resto, desconfie. Um esporte, em especial, serve como um sinal vermelho na testa de seu admirador: trata-se do vôlei masculino (nenhuma pessoa séria leva qualquer esporte feminino em consideração, para nada). Todas as equipes brasileiras que obtiveram sucesso no vôlei foram chamadas de “meninos do vôlei”. No vôlei não há indisciplina e todo mundo tem “garra” (deve ser para dar umas unhadas mais fortes). Os jogadores de vôlei comemoram tudo que dá certo, por mais idiota que seja, e ficam uns dando tapinhas na bunda do outros sem mais nem menos. A terminologia que envolve o esporte é repulsiva: block, deixadinha, manchete (meu Deus, o que é isso?), e todo mundo que joga vôlei sabe perder. Nunca, na História do vôlei, algum jogo acabou em pancadaria. A torcida de vôlei da seleção masculina é patrocinada por uma estatal. Tudo isso torna o vôlei um assunto de morde-fronhas.
       
Outro bom meio de identificar um fresco é sua alimentação. Todo homem que não compreende que o ato de comer é pura diversão e que não tem nada a ver com a saúde é, além de um fresco, um nazista e um filha de uma puta.  Há quem não coma ovo por conta do colesterol, há quem acredite que carne mal passada faz mal, há quem se julgue alérgico a todo tipo de coisa, desde o leite até o azeite. Eu acho muito engraçado. Mas há agora quem acredite que eu e você não devamos comer ovos moles com bifes gordos que espirrem sangue fervendo no olho de nossos vizinhos de mesa, porque estão preocupados com a saúde de todos nós. Aí temos um exemplo de como a frescura, além de irritante, pode ser perigosa. O fato mesmo de que médicos abram a boca para dar opinião sobre saúde pública já é um descalabro proveniente da frescura. O conceito de Saúde Pública é uma coisa bizarra: se não for para conter epidemias (daquelas clássicas, em que criaturas microscópicas nos sacaneam, e não dessas subjetivas, como obesidade), cuidar de mamães e distribuir vacinas, não consigo entender para que catzo sirva uma política pública de saúde. Deve ser para lotar o mundo de ex-fumantes mais insuportáveis do que qualquer fumaça de cigarro. Disso eu tenho certeza, porque nunca fumei: nenhum cigarro do mundo é mais inconveniente, chato e fedido do que um ex-fumante. O ex-fumante é um subproduto da frescura. Só o tabaco pode salvar-nos dessa gente.

Aliás, aqui temos mais um elemento identificador de frescos de todos os matizes: frescos sempre são muito preocupados em serem homens e mulheres de seu tempo. Se você quiser saber o que seria conveniente pensar para não parecer desalinhado, pergunte ao fresco. É por isso que a torcida do São Paulo está repleta de frescos: não é porque há um montão de homossexuais são-paulinos, coisa que até acredito que não haja. É porque, dada a capacidade da frescura de penetrar em todas as frestas da vida, é natural que ela precise de um lugarzinho só dela inclusive no futebol, no palitinho (ou porrinha, como queiram) e, por último mas não somente, até no homossexualismo mesmo.

O São Paulo Futebol Clube é, por uma série de motivos cuja exposição não cabe aqui (sobretudo agora, perto do final da crônica) o maior repositório de anseios afrescalhados de nossa crônica esportiva; ele é, portanto, aquele lugarzinho que a frescura encontrou no futebol. Daí ser tão fácil encontrar são-paulinos que acordam cedo, domingo de manhã, para assistir Fórmula 01 e choramingar a ausência de Ayrton Senna da Silva. Daí ser tão comum um sujeito alertar-nos à mesa acerca do que estamos comendo e, citando-nos a capa da última edição da “Veja”, glosar nosso cardápio, tudo isso entre um e outro elogio às coxas do Raí e aos cotovelos filantrópicos do Leonardo. Encontrar um são-paulino é, quase sempre, encontrar um fresco triunfalista.

O mais assustador disso tudo é que, constantemente, fazemos concessões à frescura. O fazemos justamente por conta da natureza afrescalhada dela, que não levamos a sério. Pois deveríamos. A frescura opera basicamente pela consideração histérica de hipóteses histéricas formuladas sobre aspectos superficiais do cotidiano. Todavia, os objetivos da tentativa de sistematização e institucionalização da frescura são sempre perversos. O Khmer Vermelho mandou muita gente para o espaço por motivos muito frescos. Usar óculos era uma sentença de morte. Quando os frescos de hoje em dia falam em alimentação saudável, aeróbica, planejamento e disciplina, eles estão falando disso mesmo: alimentação saudável, aeróbica, planejamento e disciplina. Eles querem tudo isso para você e para mim. E é aí que reside o Mal. A cada concessão que fizermos, teremos dado mais um passo em direção ao inferno: vamos todos acabar sendo obrigados a torcer pelos meninos do vôlei do São Paulo Vôlei Clube. Esperem e verão.

(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas  publicações eletrônicas.

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