domingo, 29 de março de 2015

Lata d’água na cabeça


* Por Rosiska Darcy de Oliveira


Sessenta anos atrás, no carnaval do Rio, o povo cantava a falta d’água. Lá ia Maria que, “lata d’água na cabeça, sobe o morro e não se cansa, pela mão leva a criança", Maria que lutava pelo pão de cada dia e sonhava com a vida do asfalto que acaba onde o morro principia. Hoje, às voltas com a mesma lata d’água, não sei se ela sonha com a vida do asfalto já que, mais de meio século depois, no asfalto também falta água. Sensação de tempo circular, de eterno retorno. Pura sensação. Tudo mudou.

O carnaval chegando, à boca do povo voltam os versos carnavalescos que, na década de 50, contavam o que era o Rio de Janeiro, “cidade que me seduz, de dia falta água, de noite falta luz". A marchinha mereceu, na época, tradução para o inglês da grande poetisa Elizabeth Bishop, moradora do Rio que estabeleceu com a cidade ambígua relação de amor e ódio, estarrecida com a alegria — ou a leviandade — com que os cariocas cantavam seus males.

Os cariocas mudaram. Mudou o humor. Cenhos franzidos, desgosto, olhares para o céu à cata de nuvens, ninguém está achando graça nesse inferno. Calor sufocante e uma irritação profunda e generalizada ensombrecem os tempos pré-carnavalescos. E abrem alas para quem quer engrossar e pôr na rua o bloco dos descontentes.

Nesse mais de meio século, o Brasil mudou muito e para melhor, a água encanada chegou a tantos lares que é mais difícil hoje aceitar quando a torneira seca. A população já não transforma em sambas seu desgosto. Quer saber o que está acontecendo e os riscos que corre. O ilusionismo das palavras não vivifica a terra crestada no fundo das represas.

Os governantes devem ao país uma informação cristalina sobre o que está se passando e um detalhamento das ações de resposta à crise que não deixem a sensação de que, de novo, há algo escondido. O problema é técnico, de difícil entendimento? Não nos subestimem, aprendemos depressa o que é crise hídrica e volume morto: falta d’água para milhões de brasileiros, para a indústria e agricultura. E a proximidade do fundo do poço.

A política de ocultação que precedeu as eleições, impedindo as medidas preventivas necessárias, erro gravíssimo imputável a gregos e troianos, deu no que deu: agravamento do problema e desgaste da credibilidade de todos. Sem credibilidade, vai ser difícil pedir ajuda à população para diminuir o consumo, dividir com ela as responsabilidades no enfrentamento da crise. Sem a certeza de que os governos estão dizendo, enfim, a verdade, não haverá mobilização nacional. E é certo que ela será incontornável.

O ministro de Minas e Energia apelou para Deus que, segundo ele, é brasileiro. Por pouco não cantou “Alá-lá-ô, ô ô ô, mande água pra ioiô, mande água pra iaiá". Ora, Alá, meu bom Alá, anda às voltas com os horrores e barbáries que se cometem em seu nome e o Deus que nos protege não é só brasileiro. Seu ministro mandachuva, São Pedro, manda chuva também para outros lugares. Brasileiros mesmo, somos nós, e a conversa é conosco.

A crise, real e imediata, tem a virtude de ensinar a milhões de pessoas a responsabilidade pelo seu próprio futuro e a consciência de que viver melhor ou pior é, em boa medida, o resultado de nossas próprias escolhas. As crises são educativas e uma oportunidade para mudança de comportamentos.

Começando pelo comportamento de quem nos governa. É imperativo o entendimento entre a presidente da República e os governadores dos estados atingidos, acima das querelas partidárias. Em tempos de politicalha minúscula e picuinhas, de irresponsabilidade máxima, seria um alívio a união nacional em torno do interesse público, esse que é sempre a última das preocupações da classe política. Melhor seria se, reconhecendo os imensos erros cometidos — mentiras eleitorais, falta de planejamento, incompetência na gestão e atraso tecnológico — fossem os governantes capazes de unir forças para corrigi-los.

Resta o imponderável, a chuva. As florestas amputadas estão cobrando seu preço. A natureza tem história, uma história humana da natureza, e ela sempre acaba por mostrar quem tem a última palavra. No Sul Maravilha brotam angústias nordestinas. O sertão vai virar mar e o mar virar sertão? E se chover pouco ou nada no fim do período de chuvas?

Não adianta mais cantar, como nos carnavais de outrora, "Tomara que chova três dias sem parar". O cerne da questão é que não estamos, como poderia parecer, voltando ao passado. Estamos chegando ao futuro. Apertem os cintos para aterrissar na real. Água será um bem cada vez mais raro no mundo.

O Globo, 31/1/2015


* Escritora, jornalista e imortal da Academia Brasileira de Letras

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