Lata d’água na cabeça
* Por
Rosiska Darcy de Oliveira
Sessenta anos atrás,
no carnaval do Rio, o povo cantava a falta d’água. Lá ia Maria que, “lata
d’água na cabeça, sobe o morro e não se cansa, pela mão leva a criança",
Maria que lutava pelo pão de cada dia e sonhava com a vida do asfalto que acaba
onde o morro principia. Hoje, às voltas com a mesma lata d’água, não sei se ela
sonha com a vida do asfalto já que, mais de meio século depois, no asfalto
também falta água. Sensação de tempo circular, de eterno retorno. Pura
sensação. Tudo mudou.
O carnaval chegando, à
boca do povo voltam os versos carnavalescos que, na década de 50, contavam o
que era o Rio de Janeiro, “cidade que me seduz, de dia falta água, de noite
falta luz". A marchinha mereceu, na época, tradução para o inglês da
grande poetisa Elizabeth Bishop, moradora do Rio que estabeleceu com a cidade
ambígua relação de amor e ódio, estarrecida com a alegria — ou a leviandade —
com que os cariocas cantavam seus males.
Os cariocas mudaram.
Mudou o humor. Cenhos franzidos, desgosto, olhares para o céu à cata de nuvens,
ninguém está achando graça nesse inferno. Calor sufocante e uma irritação
profunda e generalizada ensombrecem os tempos pré-carnavalescos. E abrem alas
para quem quer engrossar e pôr na rua o bloco dos descontentes.
Nesse mais de meio
século, o Brasil mudou muito e para melhor, a água encanada chegou a tantos
lares que é mais difícil hoje aceitar quando a torneira seca. A população já
não transforma em sambas seu desgosto. Quer saber o que está acontecendo e os
riscos que corre. O ilusionismo das palavras não vivifica a terra crestada no
fundo das represas.
Os governantes devem
ao país uma informação cristalina sobre o que está se passando e um
detalhamento das ações de resposta à crise que não deixem a sensação de que, de
novo, há algo escondido. O problema é técnico, de difícil entendimento? Não nos
subestimem, aprendemos depressa o que é crise hídrica e volume morto: falta
d’água para milhões de brasileiros, para a indústria e agricultura. E a
proximidade do fundo do poço.
A política de
ocultação que precedeu as eleições, impedindo as medidas preventivas
necessárias, erro gravíssimo imputável a gregos e troianos, deu no que deu:
agravamento do problema e desgaste da credibilidade de todos. Sem credibilidade,
vai ser difícil pedir ajuda à população para diminuir o consumo, dividir com
ela as responsabilidades no enfrentamento da crise. Sem a certeza de que os
governos estão dizendo, enfim, a verdade, não haverá mobilização nacional. E é
certo que ela será incontornável.
O ministro de Minas e
Energia apelou para Deus que, segundo ele, é brasileiro. Por pouco não cantou
“Alá-lá-ô, ô ô ô, mande água pra ioiô, mande água pra iaiá". Ora, Alá, meu
bom Alá, anda às voltas com os horrores e barbáries que se cometem em seu nome
e o Deus que nos protege não é só brasileiro. Seu ministro mandachuva, São
Pedro, manda chuva também para outros lugares. Brasileiros mesmo, somos nós, e
a conversa é conosco.
A crise, real e
imediata, tem a virtude de ensinar a milhões de pessoas a responsabilidade pelo
seu próprio futuro e a consciência de que viver melhor ou pior é, em boa
medida, o resultado de nossas próprias escolhas. As crises são educativas e uma
oportunidade para mudança de comportamentos.
Começando pelo comportamento
de quem nos governa. É imperativo o entendimento entre a presidente da
República e os governadores dos estados atingidos, acima das querelas
partidárias. Em tempos de politicalha minúscula e picuinhas, de
irresponsabilidade máxima, seria um alívio a união nacional em torno do
interesse público, esse que é sempre a última das preocupações da classe
política. Melhor seria se, reconhecendo os imensos erros cometidos — mentiras
eleitorais, falta de planejamento, incompetência na gestão e atraso tecnológico
— fossem os governantes capazes de unir forças para corrigi-los.
Resta o imponderável,
a chuva. As florestas amputadas estão cobrando seu preço. A natureza tem
história, uma história humana da natureza, e ela sempre acaba por mostrar quem
tem a última palavra. No Sul Maravilha brotam angústias nordestinas. O sertão
vai virar mar e o mar virar sertão? E se chover pouco ou nada no fim do período
de chuvas?
Não adianta mais
cantar, como nos carnavais de outrora, "Tomara que chova três dias sem
parar". O cerne da questão é que não estamos, como poderia parecer,
voltando ao passado. Estamos chegando ao futuro. Apertem os cintos para
aterrissar na real. Água será um bem cada vez mais raro no mundo.
O Globo, 31/1/2015
* Escritora,
jornalista e imortal da Academia Brasileira de Letras
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