segunda-feira, 16 de março de 2015

Minha alma disporei em Cantos


* Por Abílio Pacheco


Quando sigo por estas ruas, ouço a voz e a voz do poeta. A voz dos versos do mesmo modo como “retinem nos ouvidos pás e gritos”[1] e a voz do próprio pagão ora “imerso nas coisas deste e dos outros mundos”[2], ora caminhando ao meu lado na Velha Marabá.

Não sei o que me levou aquele fim de manhã para a rua Sete de Junho e de lá caminhei meio ao léu até a Bartolomeu Igreja. E a Cidade Velha era-me este espaço morto como uma língua morta. Era-me um espaço de memória de outros, mas – não sei como – de mim. Como o latim, o Núcleo Pioneiro e seus bairros – “Santa Rosa, Jureminha, Alto-do-Bode, Cabelo Seco”[3] – eram-me completely unheimlich. Reconhecidamente íntimo. Externamente familiar.

E eu seguia – Dante guiado por Virgílio – guiado por Ademir. Chegando já à Bartolomeu Igreja: “aqui era um puteiro, aqui era puteiro, aqui era puteiro…” dizia-me apontando uma e outra casa. “Eu saia porre de um e porre caía no outro”.

Não custou sua fala me trazer à tona os versos em que lamenta o destino inexorável dos meninos da região: e eles “serão juquireiro castanheiro lavrador presos de correição[4]” e das meninas que nada serão senão “flores da terra” “na valsa do deus dará”, “sono sem sonho”[5].

Cristalizado. Fossilizado… era um tempo de casas de tolerância tão perto uma da outra. Mas no meu mapa essas casas: o Cajueiro, o Copa, a Viúva, a Índia e a Piscina eram distantes entre si. Ficavam na Folha 21, na Folha 15, na Folha 16, no Belo Horizonte, Transamazônica… nenhum na Velha Marabá.

Ouço o poeta me dizer do romance que escreve em que a terra é coisa medieva. Assusto-me com sua certeza sobre os modos e os meios de produção na região. Assombro-me com aquilo que desconheço e que deveria conhecer, mas que de fato vejo… Mas calo.

Calo, não calando e aborrecendo-me. Vivo (vive-se) entre “fardos e farpas, agravos e adagas”[6]. Em águas terças, impregnados pele e pelos, unhas e dentes, olhos e lágrimas, ouvidos e gritos “e a mão em chaga viva tece de urtigas / um manto sob o céu de pássaros e bruxas”[7]. A cidade é ainda cheia de meninos sombrios, cães sem dono, cantores e poetas.

A vontade é a de sair aos gritos em versos alardeantes amorosos e politizados, como se a palavra fosse pão, água, vinho, festa e ar. A palavra modificadora da vida ordinária do operário e do cidadão vizinho.

Não sei como encerrou-se minha caminhada ao lado do poeta. Creio mesmo que nunca cessou. Saímos da Bartolomeu Igreja. Entramos na Antônio Maia… E estamos ainda lado a lado nesta vida de versos e sonhos pela cidade. Nós que por ela reciprocamente “morremos todos os dias”.

Eu pouco “sei disperso neste coração legado às ventanias”[8], mas sei mesmo que vagamente da “negra noite acumulada na boca entre versos”[9] de Ademir Braz.

Observação:

Este texto é um exercício de tradução recriativa ou transcriação a partir do poema Minha Cidade, Minha Vida [http://quaradouro.blogspot.com.br/2007/04/minha-cidade-minha-vida-ademir-braz-1.html], do escritor marabaense Ademir Braz [http://quaradouro.blogspot.com.br/2012/12/o-escritor-marabaense-abilio-pacheco.html]. O texto de chegada procurou lançar mão de elementos do texto de partida com o intuito de também acrescentar experiência e afetos nossos sobre a cidade, objeto do poema. A intenção foi de aproveitar elementos da poesia de Ademir (deste e de outros poemas) para fazer um ensaio de prosa poética, efetuando uma certa tradução da força afetiva do poema, fazendo uso dos elementos composicionais do mesmo, de modo a tocar (como afirma Walter Benjamim sobre a tradução) o original, mas também enxertando no texto elementos de nossa própria experiência de leitura da cidade e de nossa relação afetiva com a mesma, traduzindo mas mesclando lirismo de dois sujeitos amantes de Marabá.

Notas:

1 Do poema “Águas de passagem”, In: Braz, Ademir. Rebanho de Pedras (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. Pág. 81.
2 Do poema “Minha cidade, minha vida”, In: Braz, Ademir. Rebanho de Pedras (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. Pág. 25-7.
3 Do texto “A Terra Mesopotâmica do Sol ou guia nostálgico para o nada”. , In: Braz, Ademir. Esta Terra (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. Pág. 149.
4 Do poema “O Burocrata espia à janela”, In: Braz, Ademir. Esta Terra (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. Pág. 125-6.
5 Do poema “Flor da terra”, In: Braz, Ademir. Esta Terra (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. Pág. 127.
6 Do poema “Minha cidade, minha vida”. In: Braz, Ademir. Rebanho de Pedras (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. Pág. 25-7.
7 Idem.
8 Idem.
9 Idem.

* Professor universitário de literatura (UFPA-Bragança). Autor do romance “Em Despropósito (mixórdia)”, do livro de poemas “Canto Peregrino a Jerusalém celeste”, ambos pela Editora LiteraCidade. Atualmente cursa o doutorado em Literatura (THL-UNICAMP) e é Assistente Editorial (freelancer).


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