Minha alma disporei em Cantos
* Por
Abílio Pacheco
Quando sigo por estas
ruas, ouço a voz e a voz do poeta. A voz dos versos do mesmo modo como “retinem
nos ouvidos pás e gritos”[1] e a voz do próprio pagão ora “imerso nas coisas
deste e dos outros mundos”[2], ora caminhando ao meu lado na Velha Marabá.
Não sei o que me levou
aquele fim de manhã para a rua Sete de Junho e de lá caminhei meio ao léu até a
Bartolomeu Igreja. E a Cidade Velha era-me este espaço morto como uma língua
morta. Era-me um espaço de memória de outros, mas – não sei como – de mim. Como
o latim, o Núcleo Pioneiro e seus bairros – “Santa Rosa, Jureminha,
Alto-do-Bode, Cabelo Seco”[3] – eram-me completely unheimlich. Reconhecidamente
íntimo. Externamente familiar.
E eu seguia – Dante
guiado por Virgílio – guiado por Ademir. Chegando já à Bartolomeu Igreja: “aqui
era um puteiro, aqui era puteiro, aqui era puteiro…” dizia-me apontando uma e
outra casa. “Eu saia porre de um e porre caía no outro”.
Não custou sua fala me
trazer à tona os versos em que lamenta o destino inexorável dos meninos da
região: e eles “serão juquireiro castanheiro lavrador presos de correição[4]” e
das meninas que nada serão senão “flores da terra” “na valsa do deus dará”,
“sono sem sonho”[5].
Cristalizado.
Fossilizado… era um tempo de casas de tolerância tão perto uma da outra. Mas no
meu mapa essas casas: o Cajueiro, o Copa, a Viúva, a Índia e a Piscina eram
distantes entre si. Ficavam na Folha 21, na Folha 15, na Folha 16, no Belo
Horizonte, Transamazônica… nenhum na Velha Marabá.
Ouço o poeta me dizer
do romance que escreve em que a terra é coisa medieva. Assusto-me com sua
certeza sobre os modos e os meios de produção na região. Assombro-me com aquilo
que desconheço e que deveria conhecer, mas que de fato vejo… Mas calo.
Calo, não calando e
aborrecendo-me. Vivo (vive-se) entre “fardos e farpas, agravos e adagas”[6]. Em
águas terças, impregnados pele e pelos, unhas e dentes, olhos e lágrimas,
ouvidos e gritos “e a mão em chaga viva tece de urtigas / um manto sob o céu de
pássaros e bruxas”[7]. A cidade é ainda cheia de meninos sombrios, cães sem
dono, cantores e poetas.
A vontade é a de sair
aos gritos em versos alardeantes amorosos e politizados, como se a palavra
fosse pão, água, vinho, festa e ar. A palavra modificadora da vida ordinária do
operário e do cidadão vizinho.
Não sei como
encerrou-se minha caminhada ao lado do poeta. Creio mesmo que nunca cessou.
Saímos da Bartolomeu Igreja. Entramos na Antônio Maia… E estamos ainda lado a
lado nesta vida de versos e sonhos pela cidade. Nós que por ela reciprocamente
“morremos todos os dias”.
Eu pouco “sei disperso
neste coração legado às ventanias”[8], mas sei mesmo que vagamente da “negra
noite acumulada na boca entre versos”[9] de Ademir Braz.
Observação:
Este texto é um
exercício de tradução recriativa ou transcriação a partir do poema Minha
Cidade, Minha Vida
[http://quaradouro.blogspot.com.br/2007/04/minha-cidade-minha-vida-ademir-braz-1.html],
do escritor marabaense Ademir Braz [http://quaradouro.blogspot.com.br/2012/12/o-escritor-marabaense-abilio-pacheco.html].
O texto de chegada procurou lançar mão de elementos do texto de partida com o
intuito de também acrescentar experiência e afetos nossos sobre a cidade,
objeto do poema. A intenção foi de aproveitar elementos da poesia de Ademir
(deste e de outros poemas) para fazer um ensaio de prosa poética, efetuando uma
certa tradução da força afetiva do poema, fazendo uso dos elementos
composicionais do mesmo, de modo a tocar (como afirma Walter Benjamim sobre a
tradução) o original, mas também enxertando no texto elementos de nossa própria
experiência de leitura da cidade e de nossa relação afetiva com a mesma,
traduzindo mas mesclando lirismo de dois sujeitos amantes de Marabá.
Notas:
1
Do poema “Águas de passagem”, In: Braz, Ademir. Rebanho de Pedras (Rebanho de
Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. Pág. 81.
2
Do poema “Minha cidade, minha vida”, In: Braz, Ademir. Rebanho de Pedras
(Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. Pág. 25-7.
3
Do texto “A Terra Mesopotâmica do Sol ou guia nostálgico para o nada”. , In:
Braz, Ademir. Esta Terra (Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá:
Grafecort, 2003. Pág. 149.
4
Do poema “O Burocrata espia à janela”, In: Braz, Ademir. Esta Terra (Rebanho de
Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. Pág. 125-6.
5
Do poema “Flor da terra”, In: Braz, Ademir. Esta Terra (Rebanho de Pedras &
Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. Pág. 127.
6
Do poema “Minha cidade, minha vida”. In: Braz, Ademir. Rebanho de Pedras
(Rebanho de Pedras & Esta Terra). Marabá: Grafecort, 2003. Pág. 25-7.
7
Idem.
8
Idem.
9
Idem.
*
Professor universitário de literatura (UFPA-Bragança). Autor do romance “Em
Despropósito (mixórdia)”, do livro de poemas “Canto Peregrino a Jerusalém
celeste”, ambos pela Editora LiteraCidade. Atualmente cursa o doutorado em
Literatura (THL-UNICAMP) e é Assistente Editorial (freelancer).
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