domingo, 4 de dezembro de 2011







O tempo está em nós

* Por Pedro J. Bondaczuk

A infância ocupa em nossas lembranças (pelo menos nas da maioria das pessoas) um lugar especial. Ganha projeção, adquire destaque, permanece indelével, mesmo que tenha sido amarga, dolorosa, abandonada e frustrante. Ao que se deve esse comportamento? Possivelmente, à fraqueza da memória. Para preencher um vazio de lembranças, inventa-se uma fantasia qualquer e passa-se a acreditar nela. Todos com quem converso, com maior ou menor ênfase, falam desse período como de uma era dourada em que eram "felizes e não sabiam". Do que temos saudade, na verdade, não é de fatos e acontecimentos específicos dessa fase, mas de nós mesmos. Da inocência perdida, dos sonhos deixados para trás, dos ideais esfacelados pelo caminho. Rubem Braga, o guru de todos os cronistas, tem uma passagem reveladora a respeito.

Afirma, em determinado trecho da crônica "O sino de ouro", publicada no livro "A Borboleta Amarela": "...Cada um de nós quando criança tem dentro da alma seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrupção, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra e lama e podridão". É a isso que chamo de perda da inocência. Mas seria ruim essa transformação? Não seria mais seguro, prudente e racional pisar o solo da realidade, enfrentar cara a cara, de peito aberto, os perigos e as frustrações, correr atrás somente do que seja factível, desenvolver nosso potencial até seu real limite, sem extrapolar além das nossas possibilidades? Entendo que sim.

Particularmente, amo e valorizo toda a minha vida. Se fosse possível, gostaria de ser eterno, com todos os problemas que essa eternidade viesse eventualmente a trazer. Porém, tivesse que eleger determinada fase como a melhor, escolheria não a infância, mas a plena maturidade. Se não soube aproveitar determinadas oportunidades que apareceram nesse período, foi pela minha própria cegueira. Ademais, é preciso olhar sempre para frente, mesmo sabendo que lá, em algum lugar do futuro (que pode ser o próximo segundo, quem sabe) está a nossa extinção. Mas pode estar, também, o sucesso, aquele êxito que perseguimos desde crianças e que, se obtido, nos tornará imortais no coração dos semelhantes. Pode estar o amor se ainda estiver ausente da nossa vida. Pode estar a felicidade identificável (pois na maioria das vezes somos felizes em determinados momentos ou períodos e não conseguimos nos dar conta disso).

Entre dar cordas à memória, em busca do que passou, e projetar um amanhã, que pode nem mesmo existir, prefiro, por uma questão de postura e formação, o segundo. O tempo é meu capital. Não posso desperdiçar nem um instante com lembranças inúteis. Quando não houver forma de fugir das recordações, que elas sejam usadas como matérias-primas de contos, crônicas ou poesias. Cyro dos Anjos escreve, no livro "Dois Romances": "Inútil tentativa de viajar o passado, penetrar no mundo que já morreu e que, ai de nós, se nos tornou interdito, desde que deixou de existir, como presente, e se arremessou para trás". Uso, sem dúvida, as experiências que adquiri. Mas para cumprir meu papel. Para deixar a obra a que me propus. Para evitar repetir os mesmos erros que cometi. Para não tropeçar nos mesmos buracos e nem despencar nos mesmos abismos. Uso, sim, o que passou, principalmente a lembrança de quem já se foi, para fazer justiça com os que foram bons, gentis, amáveis e amigos, perpetuando alguns de seus atos e virtudes em textos.

André Maurois, em "Vozes da França", atribui essa aura de magia que conferimos à infância ao fato de nesse período não tomarmos ciência da real dimensão da maldade humana, por causa da proteção e abrigo que nossos pais nos garantem. Isto, contudo, podia ser verdade em seu país e em seu tempo e não no Brasil. Há meninos a dar com pau pelas ruas com dois, quatro, dez ou mais homicídios nas costas. Há bandidos mirins muito mais escolados e experientes na arte de espoliar bens alheios do que assaltantes adultos, com várias penas cumpridas. Há crianças que são privadas da infância desde o nascimento, dada a fragilidade, a ignorância, a ingenuidade ou a irresponsabilidade de pais que não têm condições de cuidar sequer de si, quanto mais de pôr filhos no mundo. Será que elas vão encarar essa fase como "tempos mágicos"? Deixo para reflexão outra citação de Cyro dos Anjos: "Na verdade as coisas estão é no tempo e o tempo está é dentro de nós". Para não se extinguir comigo é que registro a sua passagem.


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

Um comentário:

  1. Parece-me já ter lido esse texto, salvo engano. No livro "O Amanuense Belmiro", Cyro dos Anjos fala de forma filosófica e melancólica do seu tempo de criança em um reino mágico que só existiu na sua criatividade. No geral, esse tempo mágico nunca existiu.

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