O barulho das pedras não é o caminho das pedras
* Por Mara Narciso
Em oito meses era a terceira vez que aquele homem de 51 anos levava um ente querido para o campo santo. Este se torna verdadeiramente santo a partir do momento que lá se enterra a mãe. Pois assim havia sido. No começo do ano, a mãe dele, já idosa e doentinha, foi definhando pouco a pouco, parou de comer, desidratou-se e morreu. Foi após o banho. Tinha estado no hospital tomando soros, dias antes. Naquela tarde, a filha a lavou com capricho, arrumou-a bonitinha e a deitou de lado sobre os lençóis recém trocados. Enquanto buscava a sopa na cozinha, para tentar alimentá-la, a velha senhora deu seu último suspiro. Finou-se. Já era coisa esperada há algum tempo, ainda assim, a tristeza apossou-se daquela casa humilde, de gente acostumada com discriminações por ser pobre, por ser simples e por ser negra.
Mas o viúvo, também entrado nos anos, e com saúde mental frágil, alquebrado dentro do esquecimento, encolheu-se ainda mais no seu metro e meio, e entristecido, não conseguia comer e nem falar. Isolou-se, encastelou-se num mundo de sofrimento, de ausência e de saudade, de onde filho algum o conseguiu tirar. O pedreiro aposentado não pesava 40 quilos, murcho, sem vida, ainda que o coração batesse, ou melhor, apanhasse.
Então chega a notícia da morte do neto desse senhor. O rapaz de 25 anos, lavrador em cidadezinha pequena e próxima, estava morto. Tinha se casado há um ano e o filhinho acabara de nascer. Desmaiou, e nem chegou vivo ao hospital. Foi um susto e uma revolta para o pai do rapaz. Enterrar a mãe é uma dor sem medida, e enterrar o filho é indecente. Então o homem providenciou tudo, porém sem concordar com a história de morte súbita por possível Doença de Chagas. O menino não tinha nada, não sofria palpitação, falta de ar, inchaço, coisa alguma dessa doença. O coração do filho era forte, senão ele não aguentaria pegar no cabo da enxada, e plantar de sol a sol. Verdade que era com carteira assinada, numa grande empresa, cuidando do reflorestamento, mas era trabalho duro.
O pai do morto é operário de tecelagem, estudou pouco, mas decidiu saber o motivo daquele fim. Empenhou-se e pediu a transferência do corpo para Montes Claros, onde foi feita a autópsia, porém sem conclusão. Algum material foi colhido para análise em São Paulo.
Naquela manhã de sol forte, as flores cheirosas e sopradas pelo vento morno, bem poderiam ser prenúncio de um dia bom, mas era dia de enterro. A família reunida em torno do caixão velava seu terceiro morto, em sequência. O patriarca havia falecido. As crianças, já acostumadas, corriam por entre os túmulos, e até brincavam. Os mais velhos não choravam tanto. Estavam quase se habituando à morte. No caixão, com peso de criança, o avô descansou do sofrimento curto, porém definitivo. Acabou-se num pranto sem lágrimas e sem propriamente saber o motivo, pois pareceu não ter tido consciência nem da morte da companheira, nem do neto.
Na hora sofrida de fechar o caixão, um pouco de choro, mas o pior foi depois. Quando o caixão simples – o terceiro cotizado entre aqueles sete filhos amargurados –, todos de profissão humilde, desceu ao fundo dos sete palmos, foi mais doloroso. É que um neto jogou uma rosa quando o coveiro lançava uma pá de terra, e se ouviu o ruído característico. Um dos irmãos gritou um ai. Era o pai feito órfão duas vezes, aquele que lá já havia enterrado um filho.
Ah, que saudade! Queria vê-lo pelo menos uma vez mais para abraçá-lo. Disfarçando a lágrima que apontava impiedosa, o pai saiu a pé e de cabeça baixa. O cemitério era vizinhança antiga, pois nascera lá perto, e a morte era uma constante. Agora, seria preciso aguardar o veredicto, saber qual doença súbita tinha levado seu filho, o mais velho dos três, o companheirão do futebol nos fins de semana.
Dias depois chegou o exame de São Paulo. Abriu o papel entregue pelo carteiro. Talvez desconfiasse, mesmo sem ter visto vestígios. A visão do laudo fez seu coração sofrer outro baque. Lá dizia que a morte tinha sido por overdose de crack.
*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-
Em oito meses era a terceira vez que aquele homem de 51 anos levava um ente querido para o campo santo. Este se torna verdadeiramente santo a partir do momento que lá se enterra a mãe. Pois assim havia sido. No começo do ano, a mãe dele, já idosa e doentinha, foi definhando pouco a pouco, parou de comer, desidratou-se e morreu. Foi após o banho. Tinha estado no hospital tomando soros, dias antes. Naquela tarde, a filha a lavou com capricho, arrumou-a bonitinha e a deitou de lado sobre os lençóis recém trocados. Enquanto buscava a sopa na cozinha, para tentar alimentá-la, a velha senhora deu seu último suspiro. Finou-se. Já era coisa esperada há algum tempo, ainda assim, a tristeza apossou-se daquela casa humilde, de gente acostumada com discriminações por ser pobre, por ser simples e por ser negra.
Mas o viúvo, também entrado nos anos, e com saúde mental frágil, alquebrado dentro do esquecimento, encolheu-se ainda mais no seu metro e meio, e entristecido, não conseguia comer e nem falar. Isolou-se, encastelou-se num mundo de sofrimento, de ausência e de saudade, de onde filho algum o conseguiu tirar. O pedreiro aposentado não pesava 40 quilos, murcho, sem vida, ainda que o coração batesse, ou melhor, apanhasse.
Então chega a notícia da morte do neto desse senhor. O rapaz de 25 anos, lavrador em cidadezinha pequena e próxima, estava morto. Tinha se casado há um ano e o filhinho acabara de nascer. Desmaiou, e nem chegou vivo ao hospital. Foi um susto e uma revolta para o pai do rapaz. Enterrar a mãe é uma dor sem medida, e enterrar o filho é indecente. Então o homem providenciou tudo, porém sem concordar com a história de morte súbita por possível Doença de Chagas. O menino não tinha nada, não sofria palpitação, falta de ar, inchaço, coisa alguma dessa doença. O coração do filho era forte, senão ele não aguentaria pegar no cabo da enxada, e plantar de sol a sol. Verdade que era com carteira assinada, numa grande empresa, cuidando do reflorestamento, mas era trabalho duro.
O pai do morto é operário de tecelagem, estudou pouco, mas decidiu saber o motivo daquele fim. Empenhou-se e pediu a transferência do corpo para Montes Claros, onde foi feita a autópsia, porém sem conclusão. Algum material foi colhido para análise em São Paulo.
Naquela manhã de sol forte, as flores cheirosas e sopradas pelo vento morno, bem poderiam ser prenúncio de um dia bom, mas era dia de enterro. A família reunida em torno do caixão velava seu terceiro morto, em sequência. O patriarca havia falecido. As crianças, já acostumadas, corriam por entre os túmulos, e até brincavam. Os mais velhos não choravam tanto. Estavam quase se habituando à morte. No caixão, com peso de criança, o avô descansou do sofrimento curto, porém definitivo. Acabou-se num pranto sem lágrimas e sem propriamente saber o motivo, pois pareceu não ter tido consciência nem da morte da companheira, nem do neto.
Na hora sofrida de fechar o caixão, um pouco de choro, mas o pior foi depois. Quando o caixão simples – o terceiro cotizado entre aqueles sete filhos amargurados –, todos de profissão humilde, desceu ao fundo dos sete palmos, foi mais doloroso. É que um neto jogou uma rosa quando o coveiro lançava uma pá de terra, e se ouviu o ruído característico. Um dos irmãos gritou um ai. Era o pai feito órfão duas vezes, aquele que lá já havia enterrado um filho.
Ah, que saudade! Queria vê-lo pelo menos uma vez mais para abraçá-lo. Disfarçando a lágrima que apontava impiedosa, o pai saiu a pé e de cabeça baixa. O cemitério era vizinhança antiga, pois nascera lá perto, e a morte era uma constante. Agora, seria preciso aguardar o veredicto, saber qual doença súbita tinha levado seu filho, o mais velho dos três, o companheirão do futebol nos fins de semana.
Dias depois chegou o exame de São Paulo. Abriu o papel entregue pelo carteiro. Talvez desconfiasse, mesmo sem ter visto vestígios. A visão do laudo fez seu coração sofrer outro baque. Lá dizia que a morte tinha sido por overdose de crack.
*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-
Uma bela narrativa sobre impotência e desolação diante do inevitável. Abraços, Mara.
ResponderExcluirAgradeço o comentário atencioso, Sayonara. Obrigada!
ResponderExcluirComo servidora pública do Município de Goiânia, presto servidos num Cemitério da Cidade... sua narrativa soa-me bastante familiar. É comum e frequente, o desenlace, em períodos curtos entre um e outro, dos casais em idade adiantada. A gente percebe que sucumbem à saudade!
ResponderExcluirAbraços, Mara!
Tragédia acumulada... é muito sofrimento em pouco tempo. Mas são assim, cruas, as cores da vida - que você tão bem retratou neste relato, Mara. Abraços e parabéns.
ResponderExcluirA vida traz momentos maravilhosos, mas nós costumamos dar mais valor aos episódios de dor.A vida e morte nos cemitérios é igual para todos. Agradeço, Marleuza e Marcelo, os comentários.
ResponderExcluir