sábado, 10 de dezembro de 2011







Entre o Oceano Pacífico e o deserto do Atacama

* Por Urda Alice Klueger

(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo", publicado em 2006)

Num instante tínhamos deixado Tocopilla para trás e nosso grupo se estirava pela faixa de asfalto que existia entre o deserto e o mar. O deserto, decerto escavado por milhares de anos de ventos, assim na beira do mar era quase sempre de falésia, e entre as falésias e o mar havia um espaço plano bastante amplo, onde corria a estrada e estavam e aconteciam as outras coisas.
Os companheiros harleyros entraram na sua formação quase que militar, que a mim lembrava o exército romano, guiados pelo PHD Dov e seguidos pelo carro de apoio, com o valente Lobo Solitário sempre nos acompanhando fielmente, apesar dos 110 km/h de velocidade constante que as motos faziam. Eu voltara à garupa do seu Chico, e a estrada estava tão fácil, tão suave, tão sem sustos no seu asfalto perfeito, e a paisagem era tão bela, e soprava uma aragem que eu diria até adstringente de tão leve e morna, que quase não dava para crer que o mundo pudesse ser tão perfeito quanto estava sendo naquele lugar naquele dia! Estávamos todos sem agasalhos, em leves camisetas, mas eu não sentia o menor frio, mesmo cortando o ar a 110 km/h. À nossa direita estava o deserto; à esquerda, portanto, o Pacífico, como já disse, em toda a sua glória! O encontro do mar com o deserto não produzia praias, mas uma costa de rochedos negros pontudos e pontiagudos, pura lava solidificada um dia lá na aurora dos tempos, quando rios candentes esfriaram abruptamente ao se encontrar com a água fria do mar! Eventualmente acontecia de existir uma casa; nem faço idéia como é que às vezes podia haver uma casinha isolada no meio daquela secura toda, mas às vezes as havia, e na frente dela às vezes havia o homem que a habitava. Ao lado de uma dessas raríssimas casas isoladas, de repente, a minha infância pulou para a garupa da moto e me trouxe a maior saudade do meu pai: no terreiro ao lado da casa, o homem daquela casa ajuntava o solo do seu terreiro com uma pá, e o ensacava num saco esbranquiçado, onde se podia ler: “salitre chileno”. Perto da casa ele já alinhara todo um muro de sacos iguais já cheios, e foi então que a infância ressuscitou com tanta força: era dali que vinha o salitre chileno, aquela coisa que o meu pai comprava em sacos iguais àqueles quando eu era criança, para misturar à terra do nosso quintal, para que o nosso quintal produzisse melhor as suas verduras, as suas hortaliças!
Saberia o homem da beira do deserto onde iria parar aquele salitre que ele ensacava ao lado da sua casinha humilde? Teria ele consciência de que aquele seu serviço solitário dentro da secura do deserto colorido, à beira do Oceano Pacifico, iria engordar hortas do outro lado do continente, já quase dentro do Oceano Atlântico? Saberia ele que uma menininha ficaria vendo seu pai misturar salitre chileno à terra da sua infância, e que um dia ela cresceria e iria passar bem lá onde o homem recolhia da terra aquele salitre que produziria melhores tomates, melhores vagens, melhores rabanetes? Mas claro, não tinha sido aquele homem! Decerto tinha sido o pai dele; no tempo em que a menininha estava na infância aquele homem também estava, e decerto ficava a espiar o pai dele a recolher o salitre do solo, e talvez nunca tivesse pensado o que seria feito daquele salitre lá fora do deserto, assim como a menina nunca pensara de onde viera aquele salitre que engordava a sua horta! Aquele encontro com o homem do salitre chileno era o próprio encontro com a infância – quem poderia ter adivinhado que parte da minha infância estava escondida no Deserto do Atacama?
Nem bem me recompusera daquele encontro com o passado, e já outro vinha: o professor Alceu Natal Longo, na aula de Biologia, a nos contar sobre as conseqüências das experiências atômicas dos Estados Unidos no Pacífico, antes do fim da Segunda Guerra Mundial. Ninguém ainda sabia direito como agiria a radioatividade, e quando as experiências atômicas aconteceram no atol de Bikini, a radioatividade se propagara pelo Pacífico e matara a imensa quantidade de aves que vivia na IMENSA costa chilena, e que produziam o guano, importante produto de exportação do Chile. Guano? Afinal, o que era guano? Guano eram os dejetos das aves, que viviam nos pequenos picos de pedra negra daquela costa deserta, alimentando-se da riqueza piscosa que o mar continha. A quantidade de aves era tão grande que se formavam tais camadas de dejetos que os chilenos o recolhiam e o vendiam como adubo para muitos países do mundo. A morte das aves tinha interrompido uma rentável atividade do povo chileno e causado desemprego, e nos tempos em que eu era uma aluna de segundo grau a gente aprendia tal coisa. Eu ia e vinha, de repente fugia da aula do professor Alceu para ficar a olhar para o guano de verdade, porque depois de tanto tempo as aves haviam se recomposto, e aquele litoral de pedra negra era de novo uma mina de guano, e as milhares de aves recobriam os pequenos picos e enseadas negras, e havia lugares em que os picos negros estavam brancos de tanto guano, e em um ou outro lugar o mar batia grandes ondas contra aqueles picos brancos e os lavava, e no mar o guano boiava como espuma branca, e eu queria o meu professor de Biologia para contar a ele que eu estava vendo aquilo de verdade - céus, quantas surpresas eu teria ainda no mundo?
De repente, a rocha negra e farpada se abria num pequeno, pequenino porto assim de uns 3 ou 4 metros, talvez, mas suficiente para aportar uma canoa. Ah! Como o Homem, esse dominador do planeta, se apega à todas as possibilidades de vida! Bastava um portinho desses, uma coisinha de nada na barreira de pedra, para que se criasse uma colônia de pescadores! São muito diferentes das do Brasil, as colônias de pescadores do Norte do Chile! Não tem ranchos de espera da tainha, nem casinhas de madeira pintadas de líquenes, nada que lembre um tempo com raízes. Aquelas colônias de pescadores pareciam de brinquedo, lembravam calendários com fotos do Canadá, assim com suas casinhas pré-fabricadas muito coloridas, com seus barquinhos coloridos também puxados para o solo de rocha e com redes secando estendidas entre eles – uma graça para os olhos e para o coração! Ficava pensando que deveria haver crianças naquelas casinhas – onde iriam elas à escola? Como seria a vida de uma mulher entre o deserto e o mar, numa casinha de brinquedo? Alguém algum dia escreveria um romance sobre o tipo de vida que se levava ali? Misteriosos lugares chilenos, de um Chile cheio de mistérios, quando saberemos mais coisas sobre o coração daqueles gentes?

• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.

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