Uma última coisa
* Por Sergio Vilas Boas
Sentado na cadeira de palhinha, as pernas esticadas, o vendedor-viajante JC sopra fumaça em pequenos flocos. Nada a ver na TV. Marta se aproxima, esfrega o peito do pé na perna do marido e lhe acaricia os cabelos. Tenta transpor as barreiras de seu silêncio, observando-o em cada movimento das mãos, cada pigarro.
- Amanhã tudo se resolve, JC. Relaxa, vai.
Várias vezes JC confidenciara à mulher seus esforços para atingir uma vida tranqüila, sem embaraços nem correrias, reencontrando caminhos perdidos.
JC atira o filtro do cigarro pela janela, coça o nariz e vai arrumar sua maleta outra vez. Amanhã cedo viaja para a cidade X, mas antes tem de passar pela cidadezinha Y e aproveitar uma oportunidade de talvez lucrar com vendas no distrito Z.
Marta faz tricô na sala. Tem a mesma idade que o marido, mas não as mesmas interrogações. Mesmo assim, depois de quase 35 anos juntos, é natural que ela saiba muito mais sobre ele do que ele próprio.
* * *
Depois de iniciar negócios que ficarão pendentes ainda por alguns dias, JC está exausto e enfastiado. Entra no hotel mais próximo do terminal rodoviário. A porta de entrada tranca-se num clique suave depois de alguns segundos. JC pressente um silêncio completo, total, perturbador, como se a eternidade tivesse engolido o mundo exterior.
Ninguém na recepção. A campainha sobre o balcão é um sino sem badalo. JC bate na campainha com sua caneta-tinteiro metálica como quem busca um código-morse. A campainha está presa ao balcão de veludo esgarçado por uma cola pastosa que, depois de seca, deixara sólidas bolhas escorridas à volta.
JC bate palmas. Silêncio. Palmas de novo. Silêncio. Palmas de novo. Um velho sonolento aparece, fingindo uma simpatia improvável. O velho possui uma pele morena-escura muito lisa, cabelo abrilhantado, olhos castanhos, óculos de lentes verdes bifocais, narigão de turco. Seu arfar inquietante produz um som cavernoso mesmo calado.
JC pergunta o preço do pernoite. O velho responde com uma sinistra sinfonia de ruídos roucos. JC repete a pergunta. O velho sobe o tom de voz, o que só piora a compreensão. JC fica sem entender o porquê daquela, digamos, hostilidade. JC tem estado vulnerável, condicionado, frágil.
- O quarto mais barato que o senhor tiver, por favor. (Economias, economias; não agüento mais, completou JC, mentalmente.)
O velho turco abre seu livro de hóspedes grande encadernado em couro. Traça riscos com uma régua. Toma notas.
- São duzentos e cinqüenta cruzados, senhor. Adiantados.
Contrariado com o preço, mas sem forças para discutir ou para ir procurar outro hotelzinho, JC se abaixa para pegar seu porta-notas, que poderia estar dentro da maleta pesada, repleta de catálogos, mostruários, notas fiscais, bugigangas mil. Agacha-se. Não encontra a merda do porta-notas. Começa a dizer coisas estranhas para si mesmo. Naquela época, JC atravessava uma fase de inseguranças muito íntimas, desordens internas bastante universais.
- Guardo tão bem que esqueço onde coloco. Coisa de quem leva dinheiro dos outros... (JC está visivelmente constrangido; queria desaparecer num estalar de dedos; está fatigado, impaciente.)
O dinheiro que levava era o que a empresa lhe dera para as despesas de viagem. Enfiou tudo dentro da maleta, agravando a desordem anterior. E agora? Precisa erguer o corpo e encarar o porteiro esquisito. Dizer que não sabe ao certo onde está o dinheiro, por enquanto, mas que irá localizá-lo; que precisa tomar um banho, descansar...
***
JC se levanta mas o porteiro não está mais do outro lado do balcão. Desaparecera, simplesmente. JC tilinta sua caneta-tinteiro metálica na campainha inoperante. Ninguém responde. Bate palmas. Nada.
Decide subir cauteloso alguns degraus da escada caracol de madeira. Vê uma porta semi-aberta e um corredor estreito, onde há três poltronas velhas cheias de perfurações causadas por cigarros acesos e envoltas em uma luzinha mortiça.
Dobradiças oxidadas rangem de repente. JC pensa em fazer o caminho de volta, pra não ser reconhecido ali, mas não tem mais a agilidade dos tempos em que atravessava o Rio Grande a nado só pra desafiar a força da correnteza.
Uma mulher balofa, redonda mesmo, se aproxima. Em torno dos lábios dela, agora JC pode vê-la melhor, há um bigodinho de fios espaçados, e outros dois fios espessos se anelaram sobre a pinta preta na bochecha direita. A gorducha (seria ela uma estátua de Botero?) enxuga as mãos num avental. JC sente um mal-estar horrível.
- Temos hóspede novo, Abdul. (A gorducha grita, num barítono feroz, claríssimo.)
Abdul é o tal velho porteiro turco narigudo, que rabuja, resmunga, arfa. JC desce as escadas saltando de três em três degraus. Posta-se atrás do balcão mofado como se nunca tivesse saído dali desde que Abdul o abandonara sobrenaturalmente.
- Pode acertar amanhã até o meio-dia, senhor.
Que alívio. Mas por que esse tal de Abdul não disse isso antes? Evitaria todo esse tempo perdido, todo esse girar incontável agravado pela exaustão e pela fase difícil do vendedor-viajante JC... Orgulhoso e desafiador, JC agora prefere pagar adiantado. Questão de honra. Joga as notas de cruzados sobre o balcão. Seu porta-notas estava no bolso interno do paletó, não na maleta. Sua memória também não é mais a mesma.
***
Atônito, JC sobe as escadas rumo ao quarto. Pensa nos planos de partir bem cedo para a cidade X, passando antes pela cidadezinha Y e aproveitando a oportunidade de lucrar com algumas vendas no povoado Z. Guiou-se pela luz amarelada que se intrometia pelas gretas das janelas do corredor.
Uma lâmpada se acende. Passos se aproximam, assobios intensificam-se. JC enfia rapidamente a chave na fechadura. Não quer, de modo algum, dizer um “boa noite” semi-automático para quem quer que seja. Está enfastiado de tudo isso. Mas a fechadura emperra. Que lástima. A chave não gira. Que merda. JC força a porta. Nada.
Um homem de chapéu-coco, bengala e terno de casemira pára diante de JC. Assobiava “Singing in the rain”. Baixote, o sujeito verifica JC de cima a baixo antes de entrar no quarto em frente. Puxa a porta usando o gancho da bengala. Antes de travar a porta, dá uma última espiada insinuante em JC, que até hoje não sabe dizer ao certo se o tal sujeito chaplinesco realmente apareceu ou se foi coisa da sua imaginação.
O confuso JC respira fundo. Diz para si mesmo “jamais arrebentarei essa porta a pontapés; jamais me deixarei vencer pela impaciência e pelo mau-humor”. Concentra-se. Pede a Deus para que a maldita chave gire na maldita fechadura, o que de fato ocorre logo na primeira tentativa. E com uma facilidade desconcertante.
***
É verdade que JC completou sessenta anos faz dois meses. É verdade que ele nunca perdeu a prudência, nunca relaxou no trabalho, nunca traiu sua família nem seus amigos. Talvez tenha traído a si mesmo, mas isso é outra história. A essa altura do campeonato, às vésperas de aposentar-se, está mais que acostumado a noites vazias, silenciosas e insones; está mais que acostumado a hoteizinhos baratos onde nada funciona e tudo é surreal.
Em suas insônias, JC gosta de observar os movimentos cíclicos da noite. Vêm e vão-se as constelações, as luas, as nuvens, a névoa, os insetos persistentes, o abrir e fechar de pétalas, o latido de um cão, o ronco de um motor, um grito, silêncios de todo tipo e de toda sorte.
Se conseguiu tudo o que queria? Talvez sim: casa própria, carro, boa educação para seus três filhos, visitar o mar uma vez por ano, essas coisas. Sim, essas coisas.
* * *
Foram quase dez horas de viagem em um ônibus caquético. A cidade agora está calma. A praça defronte, vazia. Os lambe-lambes foram descansar. A pândega de ambulantes cessara.
Alguns amantes de plantão se preparavam para (outros emergiam de) seus prazeres íntimos em colchões de molas mal posicionados em quartos feios dentro de sobrados do início do século 20 agora transformados em hotéis desprovidos de categoria. Outros amantes ainda se prendem pelo problema do preço. Negociam. Negaceiam.
JC fecha a janela. Quer banho e cama. O quarto que Abdul lhe dera tem duas de solteiro, um guarda-roupa mofado e uma pia pequena e sem privacidade. JC arremessa a um canto as toalhas da casa. Elas sempre têm o mesmo intragável odor de pano escaldado há anos.
Seu corpo surrado, de peles flácidas, agradece a água morna do chuveiro metálico turbulento pleno de maus contatos. Todos os mistérios do mundo pareciam convergidos para aquele pequeno ápice de alívio. A questão de sempre reverberava: havia chegado a hora de parar?
Quando o sono é vencido pelas preocupações, as horas não se contam; e quando um homem descobre que correu atrás de sua própria sombra, a primeira coisa que lhe ocorre é cogitar. Destruir falsos castelos, por exemplo. Chega um momento em que queremos fazer tudo de uma só vez, sem a certeza de estarmos abreviando ou empurrando com as próprias mãos os ponteiros do relógio.
Mesmo para JC, que há tantos anos trafega por universos de segunda classe, um hotel será sempre um lugar sem raízes. Um não-lugar, ou quase. Por outro lado, é nesses quartos mal-ajambrados de hotéis fuleiros que ele fez suas reflexões mais complexas, impossíveis de ser feitas em casa por causa daquela responsabilidade toda.
* * *
No ônibus, a caminho da cidade X, em cujo trajeto se passa passa na cidade Y, sempre com a possibilidade de algumas vendas no povoado Z, JC fez uma retrospectiva: nascer, crescer, emigrar, casar, ter filhos, trabalhar feito um burro para construir.
Não, JC não tem mais pique para ficar por aí viajando como um cavaleiro errante.
O ônibus galga preguiçosamente uma cadeia de montanhas escalavradas pela máquinas vorazes das mineradoras.
Reclina-se na poltrona. Fecha os olhos. Está à procura de seu personagem principal. Os pais faleceram, os amigos envelheceram um tanto quanto e os filhos cresceram tão rapidamente quanto os seus cabelos brancos.
Já próximo da cidade X, JC sente uma forte dor no peito. Vai parar em um hospital de recursos limitados. Não é infarto, para sua sorte, e sim uma hérnia de hiato. Mas o médico diz que JC ia mesmo acabar mal por causa de seu estilo de vida.
Marta, ah Marta! Ela que sempre lhe falou da importância de se praticar esportes, parar com o cigarro e não comer porcarias. JC uma vez chegou a pensar em deixá-la, negando para si mesmo o fato de ser totalmente dependente dela. Jamais se esquecerá de Marta entrando no quarto do hospital e dizendo-lhe, refletidamente, depois que as visitas saíram:
- Tá na hora de sossegar, parar com essas viagens, João.
***
Às 7h30, Abdul, o porteiro sobrenatural, estava atrás do balcão do hotel, meio que escondido atrás de um jornal aberto nas páginas de esportes. A velha gorducha e bigoduda, personagem de Botero, varria o corredor, cheia de energia. JC deixou o hotel medíocre sem ser notado, rumo à ultima viagem de sua vida.
* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
* Por Sergio Vilas Boas
Sentado na cadeira de palhinha, as pernas esticadas, o vendedor-viajante JC sopra fumaça em pequenos flocos. Nada a ver na TV. Marta se aproxima, esfrega o peito do pé na perna do marido e lhe acaricia os cabelos. Tenta transpor as barreiras de seu silêncio, observando-o em cada movimento das mãos, cada pigarro.
- Amanhã tudo se resolve, JC. Relaxa, vai.
Várias vezes JC confidenciara à mulher seus esforços para atingir uma vida tranqüila, sem embaraços nem correrias, reencontrando caminhos perdidos.
JC atira o filtro do cigarro pela janela, coça o nariz e vai arrumar sua maleta outra vez. Amanhã cedo viaja para a cidade X, mas antes tem de passar pela cidadezinha Y e aproveitar uma oportunidade de talvez lucrar com vendas no distrito Z.
Marta faz tricô na sala. Tem a mesma idade que o marido, mas não as mesmas interrogações. Mesmo assim, depois de quase 35 anos juntos, é natural que ela saiba muito mais sobre ele do que ele próprio.
* * *
Depois de iniciar negócios que ficarão pendentes ainda por alguns dias, JC está exausto e enfastiado. Entra no hotel mais próximo do terminal rodoviário. A porta de entrada tranca-se num clique suave depois de alguns segundos. JC pressente um silêncio completo, total, perturbador, como se a eternidade tivesse engolido o mundo exterior.
Ninguém na recepção. A campainha sobre o balcão é um sino sem badalo. JC bate na campainha com sua caneta-tinteiro metálica como quem busca um código-morse. A campainha está presa ao balcão de veludo esgarçado por uma cola pastosa que, depois de seca, deixara sólidas bolhas escorridas à volta.
JC bate palmas. Silêncio. Palmas de novo. Silêncio. Palmas de novo. Um velho sonolento aparece, fingindo uma simpatia improvável. O velho possui uma pele morena-escura muito lisa, cabelo abrilhantado, olhos castanhos, óculos de lentes verdes bifocais, narigão de turco. Seu arfar inquietante produz um som cavernoso mesmo calado.
JC pergunta o preço do pernoite. O velho responde com uma sinistra sinfonia de ruídos roucos. JC repete a pergunta. O velho sobe o tom de voz, o que só piora a compreensão. JC fica sem entender o porquê daquela, digamos, hostilidade. JC tem estado vulnerável, condicionado, frágil.
- O quarto mais barato que o senhor tiver, por favor. (Economias, economias; não agüento mais, completou JC, mentalmente.)
O velho turco abre seu livro de hóspedes grande encadernado em couro. Traça riscos com uma régua. Toma notas.
- São duzentos e cinqüenta cruzados, senhor. Adiantados.
Contrariado com o preço, mas sem forças para discutir ou para ir procurar outro hotelzinho, JC se abaixa para pegar seu porta-notas, que poderia estar dentro da maleta pesada, repleta de catálogos, mostruários, notas fiscais, bugigangas mil. Agacha-se. Não encontra a merda do porta-notas. Começa a dizer coisas estranhas para si mesmo. Naquela época, JC atravessava uma fase de inseguranças muito íntimas, desordens internas bastante universais.
- Guardo tão bem que esqueço onde coloco. Coisa de quem leva dinheiro dos outros... (JC está visivelmente constrangido; queria desaparecer num estalar de dedos; está fatigado, impaciente.)
O dinheiro que levava era o que a empresa lhe dera para as despesas de viagem. Enfiou tudo dentro da maleta, agravando a desordem anterior. E agora? Precisa erguer o corpo e encarar o porteiro esquisito. Dizer que não sabe ao certo onde está o dinheiro, por enquanto, mas que irá localizá-lo; que precisa tomar um banho, descansar...
***
JC se levanta mas o porteiro não está mais do outro lado do balcão. Desaparecera, simplesmente. JC tilinta sua caneta-tinteiro metálica na campainha inoperante. Ninguém responde. Bate palmas. Nada.
Decide subir cauteloso alguns degraus da escada caracol de madeira. Vê uma porta semi-aberta e um corredor estreito, onde há três poltronas velhas cheias de perfurações causadas por cigarros acesos e envoltas em uma luzinha mortiça.
Dobradiças oxidadas rangem de repente. JC pensa em fazer o caminho de volta, pra não ser reconhecido ali, mas não tem mais a agilidade dos tempos em que atravessava o Rio Grande a nado só pra desafiar a força da correnteza.
Uma mulher balofa, redonda mesmo, se aproxima. Em torno dos lábios dela, agora JC pode vê-la melhor, há um bigodinho de fios espaçados, e outros dois fios espessos se anelaram sobre a pinta preta na bochecha direita. A gorducha (seria ela uma estátua de Botero?) enxuga as mãos num avental. JC sente um mal-estar horrível.
- Temos hóspede novo, Abdul. (A gorducha grita, num barítono feroz, claríssimo.)
Abdul é o tal velho porteiro turco narigudo, que rabuja, resmunga, arfa. JC desce as escadas saltando de três em três degraus. Posta-se atrás do balcão mofado como se nunca tivesse saído dali desde que Abdul o abandonara sobrenaturalmente.
- Pode acertar amanhã até o meio-dia, senhor.
Que alívio. Mas por que esse tal de Abdul não disse isso antes? Evitaria todo esse tempo perdido, todo esse girar incontável agravado pela exaustão e pela fase difícil do vendedor-viajante JC... Orgulhoso e desafiador, JC agora prefere pagar adiantado. Questão de honra. Joga as notas de cruzados sobre o balcão. Seu porta-notas estava no bolso interno do paletó, não na maleta. Sua memória também não é mais a mesma.
***
Atônito, JC sobe as escadas rumo ao quarto. Pensa nos planos de partir bem cedo para a cidade X, passando antes pela cidadezinha Y e aproveitando a oportunidade de lucrar com algumas vendas no povoado Z. Guiou-se pela luz amarelada que se intrometia pelas gretas das janelas do corredor.
Uma lâmpada se acende. Passos se aproximam, assobios intensificam-se. JC enfia rapidamente a chave na fechadura. Não quer, de modo algum, dizer um “boa noite” semi-automático para quem quer que seja. Está enfastiado de tudo isso. Mas a fechadura emperra. Que lástima. A chave não gira. Que merda. JC força a porta. Nada.
Um homem de chapéu-coco, bengala e terno de casemira pára diante de JC. Assobiava “Singing in the rain”. Baixote, o sujeito verifica JC de cima a baixo antes de entrar no quarto em frente. Puxa a porta usando o gancho da bengala. Antes de travar a porta, dá uma última espiada insinuante em JC, que até hoje não sabe dizer ao certo se o tal sujeito chaplinesco realmente apareceu ou se foi coisa da sua imaginação.
O confuso JC respira fundo. Diz para si mesmo “jamais arrebentarei essa porta a pontapés; jamais me deixarei vencer pela impaciência e pelo mau-humor”. Concentra-se. Pede a Deus para que a maldita chave gire na maldita fechadura, o que de fato ocorre logo na primeira tentativa. E com uma facilidade desconcertante.
***
É verdade que JC completou sessenta anos faz dois meses. É verdade que ele nunca perdeu a prudência, nunca relaxou no trabalho, nunca traiu sua família nem seus amigos. Talvez tenha traído a si mesmo, mas isso é outra história. A essa altura do campeonato, às vésperas de aposentar-se, está mais que acostumado a noites vazias, silenciosas e insones; está mais que acostumado a hoteizinhos baratos onde nada funciona e tudo é surreal.
Em suas insônias, JC gosta de observar os movimentos cíclicos da noite. Vêm e vão-se as constelações, as luas, as nuvens, a névoa, os insetos persistentes, o abrir e fechar de pétalas, o latido de um cão, o ronco de um motor, um grito, silêncios de todo tipo e de toda sorte.
Se conseguiu tudo o que queria? Talvez sim: casa própria, carro, boa educação para seus três filhos, visitar o mar uma vez por ano, essas coisas. Sim, essas coisas.
* * *
Foram quase dez horas de viagem em um ônibus caquético. A cidade agora está calma. A praça defronte, vazia. Os lambe-lambes foram descansar. A pândega de ambulantes cessara.
Alguns amantes de plantão se preparavam para (outros emergiam de) seus prazeres íntimos em colchões de molas mal posicionados em quartos feios dentro de sobrados do início do século 20 agora transformados em hotéis desprovidos de categoria. Outros amantes ainda se prendem pelo problema do preço. Negociam. Negaceiam.
JC fecha a janela. Quer banho e cama. O quarto que Abdul lhe dera tem duas de solteiro, um guarda-roupa mofado e uma pia pequena e sem privacidade. JC arremessa a um canto as toalhas da casa. Elas sempre têm o mesmo intragável odor de pano escaldado há anos.
Seu corpo surrado, de peles flácidas, agradece a água morna do chuveiro metálico turbulento pleno de maus contatos. Todos os mistérios do mundo pareciam convergidos para aquele pequeno ápice de alívio. A questão de sempre reverberava: havia chegado a hora de parar?
Quando o sono é vencido pelas preocupações, as horas não se contam; e quando um homem descobre que correu atrás de sua própria sombra, a primeira coisa que lhe ocorre é cogitar. Destruir falsos castelos, por exemplo. Chega um momento em que queremos fazer tudo de uma só vez, sem a certeza de estarmos abreviando ou empurrando com as próprias mãos os ponteiros do relógio.
Mesmo para JC, que há tantos anos trafega por universos de segunda classe, um hotel será sempre um lugar sem raízes. Um não-lugar, ou quase. Por outro lado, é nesses quartos mal-ajambrados de hotéis fuleiros que ele fez suas reflexões mais complexas, impossíveis de ser feitas em casa por causa daquela responsabilidade toda.
* * *
No ônibus, a caminho da cidade X, em cujo trajeto se passa passa na cidade Y, sempre com a possibilidade de algumas vendas no povoado Z, JC fez uma retrospectiva: nascer, crescer, emigrar, casar, ter filhos, trabalhar feito um burro para construir.
Não, JC não tem mais pique para ficar por aí viajando como um cavaleiro errante.
O ônibus galga preguiçosamente uma cadeia de montanhas escalavradas pela máquinas vorazes das mineradoras.
Reclina-se na poltrona. Fecha os olhos. Está à procura de seu personagem principal. Os pais faleceram, os amigos envelheceram um tanto quanto e os filhos cresceram tão rapidamente quanto os seus cabelos brancos.
Já próximo da cidade X, JC sente uma forte dor no peito. Vai parar em um hospital de recursos limitados. Não é infarto, para sua sorte, e sim uma hérnia de hiato. Mas o médico diz que JC ia mesmo acabar mal por causa de seu estilo de vida.
Marta, ah Marta! Ela que sempre lhe falou da importância de se praticar esportes, parar com o cigarro e não comer porcarias. JC uma vez chegou a pensar em deixá-la, negando para si mesmo o fato de ser totalmente dependente dela. Jamais se esquecerá de Marta entrando no quarto do hospital e dizendo-lhe, refletidamente, depois que as visitas saíram:
- Tá na hora de sossegar, parar com essas viagens, João.
***
Às 7h30, Abdul, o porteiro sobrenatural, estava atrás do balcão do hotel, meio que escondido atrás de um jornal aberto nas páginas de esportes. A velha gorducha e bigoduda, personagem de Botero, varria o corredor, cheia de energia. JC deixou o hotel medíocre sem ser notado, rumo à ultima viagem de sua vida.
* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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