O retorno do reprimido
* Por Ronaldo Bressane
* Por Ronaldo Bressane
Não leia se não tiver assistido a Caché (de Michael Haneke, diretor de Funny games, A professora de piano, Código desconhecido)...
Na penúltima seqüência do filme, vemos a sua gênese. É quando o reprimido – o menino argelino que segura o machado aí em cima (Mejid) é finalmente expulso da casa de Georges (vivido quando adulto por Georges Auteuil).
É precisamente neste instante que nasce o trauma do rico e erudito francês, apresentador de TV. Um trauma a retornar quando Georges começa a receber estranhos videotapes que retratam seu confortável cotidiano. Os videotapes o atormentam com a questão: quem o está espionando? Quem será este objeto oculto (cachê)?
A pergunta retorna nessa penúltima seqüência – filmada exatamente como as cenas dos videotapes: câmera parada, narrador distante. Quem espionará, de longe, o menino argelino ser expulso da casa dos franceses burgueses? Não será Georges?
E, digamos, se o narrador oculto desta seqüência for Georges... Quem sabe se não seria o próprio Georges, um bem-sucedido apresentador de um programa literário na TV, a editar os videotapes e enviá-los para si mesmo – como se fosse o um Mr. Hyde a aterrorizar sua face Dr. Jekyll?
O enquadramento é o mesmo: frio, asséptico, longínquo, silencioso, a uniformizar planos, fundo e objeto. O outro, o que está fora, é todo indistinto, tal como, para o Merseault do L'Étranger de Camus, "todos os árabes são iguais" sob o ímpio sol.
Sendo assim, nada mais lógico para Georges apaziguar sua consciência do que assassinar o reprimido por seu trauma – Mejid, o árabe adulto. Cujo filho é, aliás, ninguém menos que o próprio instrutor de natação do filho de Georges – um fã do argelino Zinedine Zidane.
(Haneke não escolheu a piscina ao acaso: ele lembra, em dado momento, do massacre de 17 de setembro de 1961, quando cerca de 200 argelinos foram afogados no Sena – os pais de Mejid, empregados dos pais de Georges, estariam entre esses argelinos).
Aos olhos de todos – espectador incluso –, Georges irá encobrir seu crime montando os videotapes que envia para seu próprio endereço, enganando sua mulher (Juliette Binoche), os amigos e a até a polícia. Enganará, quem sabe, até a si mesmo. E finalmente conseguirá dormir em paz – nem que a custo de comprimidos.
Talvez essa um tanto vaga interpretação psicanalítica seja sintoma da porrada que Caché detona nos sentidos. Pois o eixo do filme não me parece tanto o tema "a culpa do homem ocidental (Georges) por seus crimes contra o terceiro mundo (Mejid)" – visão simplista –, senão a crise de representação que esta narrativa impõe: quem é o verdadeiro narrador da história – o repressor ou o reprimido?
É um filme que sugere mais enigmas que soluções. Equilibrando-se sobre essa realidade hesitante – motivo caro à narrativa fantástica –, Caché é tão preciso e cristalino que insinua o seu exato oposto. Não à toa deixa aquele estranho gosto de teoria da conspiração, ou apofenia (distúrbio paranóide que faz com que se encontre conexões em fenômenos sem ligação entre si).
Você sai do cinema atordoado, necessariamente voltando a câmera sobre seus próprios demônios. Uma garganta cortada, uma tranqüila rua burguesa, um galo que voa sem cabeça. Depois de Haneke, ninguém mais vai conseguir ver coisas assim impunemente.
Na penúltima seqüência do filme, vemos a sua gênese. É quando o reprimido – o menino argelino que segura o machado aí em cima (Mejid) é finalmente expulso da casa de Georges (vivido quando adulto por Georges Auteuil).
É precisamente neste instante que nasce o trauma do rico e erudito francês, apresentador de TV. Um trauma a retornar quando Georges começa a receber estranhos videotapes que retratam seu confortável cotidiano. Os videotapes o atormentam com a questão: quem o está espionando? Quem será este objeto oculto (cachê)?
A pergunta retorna nessa penúltima seqüência – filmada exatamente como as cenas dos videotapes: câmera parada, narrador distante. Quem espionará, de longe, o menino argelino ser expulso da casa dos franceses burgueses? Não será Georges?
E, digamos, se o narrador oculto desta seqüência for Georges... Quem sabe se não seria o próprio Georges, um bem-sucedido apresentador de um programa literário na TV, a editar os videotapes e enviá-los para si mesmo – como se fosse o um Mr. Hyde a aterrorizar sua face Dr. Jekyll?
O enquadramento é o mesmo: frio, asséptico, longínquo, silencioso, a uniformizar planos, fundo e objeto. O outro, o que está fora, é todo indistinto, tal como, para o Merseault do L'Étranger de Camus, "todos os árabes são iguais" sob o ímpio sol.
Sendo assim, nada mais lógico para Georges apaziguar sua consciência do que assassinar o reprimido por seu trauma – Mejid, o árabe adulto. Cujo filho é, aliás, ninguém menos que o próprio instrutor de natação do filho de Georges – um fã do argelino Zinedine Zidane.
(Haneke não escolheu a piscina ao acaso: ele lembra, em dado momento, do massacre de 17 de setembro de 1961, quando cerca de 200 argelinos foram afogados no Sena – os pais de Mejid, empregados dos pais de Georges, estariam entre esses argelinos).
Aos olhos de todos – espectador incluso –, Georges irá encobrir seu crime montando os videotapes que envia para seu próprio endereço, enganando sua mulher (Juliette Binoche), os amigos e a até a polícia. Enganará, quem sabe, até a si mesmo. E finalmente conseguirá dormir em paz – nem que a custo de comprimidos.
Talvez essa um tanto vaga interpretação psicanalítica seja sintoma da porrada que Caché detona nos sentidos. Pois o eixo do filme não me parece tanto o tema "a culpa do homem ocidental (Georges) por seus crimes contra o terceiro mundo (Mejid)" – visão simplista –, senão a crise de representação que esta narrativa impõe: quem é o verdadeiro narrador da história – o repressor ou o reprimido?
É um filme que sugere mais enigmas que soluções. Equilibrando-se sobre essa realidade hesitante – motivo caro à narrativa fantástica –, Caché é tão preciso e cristalino que insinua o seu exato oposto. Não à toa deixa aquele estranho gosto de teoria da conspiração, ou apofenia (distúrbio paranóide que faz com que se encontre conexões em fenômenos sem ligação entre si).
Você sai do cinema atordoado, necessariamente voltando a câmera sobre seus próprios demônios. Uma garganta cortada, uma tranqüila rua burguesa, um galo que voa sem cabeça. Depois de Haneke, ninguém mais vai conseguir ver coisas assim impunemente.
*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).
Nenhum comentário:
Postar um comentário