O Cristo Mulato
(Teatro)
* Por José Calvino de Andrade Lima
- Primeiro ato do livro homônimo do autor, publicado em 1982/1994/2006 -
ATO I
CENA I
CENÁRIO
Igreja antiga de uma cidade do interior. Em frente, uma pequena calçada com três
degraus. Nos dois lados da igreja vê-se fachadas das casas estilo barroco, à esquer-
da vê-se um imenso terreno matagoso cortado pela estrada de ferro, com postes te-
legráficos ao lado da linha. À direita, se vê um orelhão. E, mais adiante, uma estação
de trem. Vê-se ainda lampiões nos postes e na maioria das casas.
ANOS 70:
Ao abrir-se o pano, vemos um grupo de jovens estudantes junto ao povo. Alguns estudantes procuram apedrejar os ônibus. Vê-se ainda outros revoltosos com paralelepípedos nas mãos. O líder do grupo impede, procurando acalmar os ânimos e evitar cenas de violência. O jovem líder se chama Kalvinovitch. Ouve-se canções de protesto de Blitzstein (música de caráter patriótico) ou outra canção. As músicas ficam a cargo do(a) diretor(a).
KALVINOVITCH (Em voz alta, irritado) – Assassinos, ladrões, vivem a roubar o dinheiro do povo!
POVO REVOLTADO:
H1 – Estou arretado da vida, aqueles investigadores apreenderam os meus livros de estudos sobre o cubismo, eles confundiram com Cuba de Fidel Castro!
Risos
H2 – São uns analfabetos, coitados, eles até que não têm culpa, os comandantes deles sim, como os PMs que estão pintando miséria no centro da cidade. Será que a cúpula não sabe?
H3 – O que é pior é que o Exército está jogando as polícias ao nosso encontro, responsabilizando-os perante à sociedade e à opinião pública.
H1 – Aquele sargento do Exército que está na reserva agora só anda fardado de segundo tenente com um “pingalim”'ª' na mão! Ele está como chefe da segurança da estrada de ferro. Lá está uma verdadeira delegacia de polícia, a tabica come no centro. Ele vive alcagüetando os ferroviários lá no IV Exército, sabia?
'ª' Pingalim, castanho ou preto, usado facultativamente por Oficial, subtenente e Sargento nos uniformes, previsto no Regulamento de Uniforme Militar. Somente Oficiais e Praças possuidores do Curso da Escola de Equitação do Exército poderão usar o pingalim preto.
_________________________
H2 – Sei, ele tem toda cobertura do IV Exército, nem oficial ele é! E outra, ele é amicíssimo do jornalista, que era editor geral do Jornal da Cidade na época quando houve o golpe de sessenta e quatro, sabia também?
H1 – Eu sei de tudo – Agora, homem mesmo, cabra macho, é Gregório Bezerra, que foi torturado pelo tenente-coronel Villocq lá em Casa Forte. Apanhou até de rebenque...
H2 (Corta) – Mas vamos deixar isso prá lá, o bom é que tem oficiais do Exército que são homens de bem, como por exemplo o tenente-coronel Ruy Vidal de Araújo, comandante do catorze RI, major Joaquim Gonçalves Vilarinho Neto e outros. O coronel Vidal mesmo, é um gaúcho muito educado e espírita, foi ele quem liberou os presos inocentes que conduziam para o 14 (catorze), como foi o caso do Cristo Mulato, que foi preso sem fazer nada, somente por causa de informes mentirosos! São perversos esses militares. O coronel Vidal é tão educado, que pediu desculpas aos presos políticos no 14, por haverem passado a noite em lugar impróprio, os mesmos tinham direito a “prisão especial”. E o major Vilarinho Neto também é um homem muito educado e está prá ser comandante da “meganha”. Eu tenho certeza de que ele será um ótimo comandante!
M1 – Bom, como querem os arbitrários militares que a gente cumpra a lei, com esta esculhambação toda, salário de fome deste? O ministro mandando a gente apertar o cinto, que vergonha nacional!
H1 – O povo, unido, jamais será vencido. Já pensou naquele povo que acompanha “O Galo da Madrugada”, revoltado?
M1 Bastaria a metade daquela gente para se rebelar contra este desgoverno que aí está.
Vozearia.
Neste momento, a praça é subitamente invadida por tropas da polícia, soldados com armas na mão. Sob o comando de um Oficial Superior. Ouvem-se tiros, intermitentes sirenes das viaturas das polícias civil e militar! Kalvinovitch é preso e conduzido para o xadrez.
FECHA A CORTINA
CENA II
CENÁRIO – O mesmo da primeira cena.
Época – Vinte e nove anos passados/1941.
Ao abrir-se a cortina, vemos a plataforma da estação. O Chefe da Estação conversando com uma moça negra e um guarda-freios. Ouve-se o eco do apito da locomotiva e o seu rugido.
CHEFE DA ESTAÇÃO – Quem é esta moça?
GUARDA FREIOS – Foi o coroné Chico quem mandou eu entregar ao “Diabo Louro”, para arranjar emprego prá ela.
CHEFE DA ESTAÇÃO – Diga ao doutor João Roma que estou precisando de uma empregada. (Amável à negra) Quer ficar comigo?
NEGRA (Contente, esperançosa) – Quero, sim senhor, o senhor não vai deixar o “Diabo louro” tirar o meu filho do mundo, vai não, vai?
CHEFE DA ESTAÇÃO – Filho do mundo, que história é essa?
NEGRA (Chorando com soluços) – Estou grávida e quero que o meu filho nasça.
CHEFE DA ESTAÇÃO (Compreendendo) – Não se preocupe que o doutor João Roma é um homem da lei, e não um diabo. (Enérgico ao guarda-freios) Olhe, não chame o doutor de diabo, ouviu? Outra coisa, você realmente ia levá-la prá onde?
GUARDA FREIOS – Chefe, pelo amor de Deus, não diga nada ao... (Gaguejando) dô-dô-dôtô...
CHEFE DA ESTAÇÃO (Corta) – Doutor João Roma.
GUARDA FREIOS (Arrependido) – Eu ia pro-pro-vi-den-ciar na-na rua da-da-guia o aborto.
CHEFE DA ESTAÇÃO (Compreendendo) – Já sei, a moça, de agora em diante, é minha empregada. Prometo não dizer nada ao doutor e você diga ao coronel Chico que tudo foi providenciado.
O Chefe da estação providencia a licença e manda dar partida ao trem, e sai com a negra em direção à sua casa.
GUARDA FREIOS (Retira-se) – Mui-mui-to obri-ga-ga-do!
Ouve-se o eco do apito do trem, distante.
FECHA O PANO LENTAMENTE
CENA III
CENÁRIO – O mesmo das cenas anteriores.
Época – Meses depois.
Ao abrir-se o pano – Casa do Chefe da Estação, o Chefe da Estação conversando com o português e a negra prenhe.
CHEFE DA ESTAÇÃO – Você quer se casar. Ela é uma menina muito direita, e o problema está na vista, você já sabe. a responsabilidade é grande.
PORTUGUÊS (Ansioso, à negra) – Você quer se casar comigo?
NEGRA (Consigo mesma, ansiosa) – Não, não acredito, um homem branco, português, querendo se casar logo comigo, uma mulher de cor, uma negra? (Levanta-se contente) – Muito obrigada, eu aceito, mas com a seguinte proposta: ir residir em Nazaré, para tirar a minha mãe do Engenho. Promete fazer isto?
PORTUGUÊS – Prometo. Viajaremos amanhã bem cedinho, no trem das seis e trinta, combinado? Olhe que tudo está sendo acordado na frente do chefe.
NEGRA (Sorridente) – Combinado.
CHEFE DA ESTAÇÃO – Sejam felizes. Amanhã deixarei vocês no trem.
Saem. Ouve-se uma canção de amor.
FECHA A CORTINA
(Teatro)
* Por José Calvino de Andrade Lima
- Primeiro ato do livro homônimo do autor, publicado em 1982/1994/2006 -
ATO I
CENA I
CENÁRIO
Igreja antiga de uma cidade do interior. Em frente, uma pequena calçada com três
degraus. Nos dois lados da igreja vê-se fachadas das casas estilo barroco, à esquer-
da vê-se um imenso terreno matagoso cortado pela estrada de ferro, com postes te-
legráficos ao lado da linha. À direita, se vê um orelhão. E, mais adiante, uma estação
de trem. Vê-se ainda lampiões nos postes e na maioria das casas.
ANOS 70:
Ao abrir-se o pano, vemos um grupo de jovens estudantes junto ao povo. Alguns estudantes procuram apedrejar os ônibus. Vê-se ainda outros revoltosos com paralelepípedos nas mãos. O líder do grupo impede, procurando acalmar os ânimos e evitar cenas de violência. O jovem líder se chama Kalvinovitch. Ouve-se canções de protesto de Blitzstein (música de caráter patriótico) ou outra canção. As músicas ficam a cargo do(a) diretor(a).
KALVINOVITCH (Em voz alta, irritado) – Assassinos, ladrões, vivem a roubar o dinheiro do povo!
POVO REVOLTADO:
H1 – Estou arretado da vida, aqueles investigadores apreenderam os meus livros de estudos sobre o cubismo, eles confundiram com Cuba de Fidel Castro!
Risos
H2 – São uns analfabetos, coitados, eles até que não têm culpa, os comandantes deles sim, como os PMs que estão pintando miséria no centro da cidade. Será que a cúpula não sabe?
H3 – O que é pior é que o Exército está jogando as polícias ao nosso encontro, responsabilizando-os perante à sociedade e à opinião pública.
H1 – Aquele sargento do Exército que está na reserva agora só anda fardado de segundo tenente com um “pingalim”'ª' na mão! Ele está como chefe da segurança da estrada de ferro. Lá está uma verdadeira delegacia de polícia, a tabica come no centro. Ele vive alcagüetando os ferroviários lá no IV Exército, sabia?
'ª' Pingalim, castanho ou preto, usado facultativamente por Oficial, subtenente e Sargento nos uniformes, previsto no Regulamento de Uniforme Militar. Somente Oficiais e Praças possuidores do Curso da Escola de Equitação do Exército poderão usar o pingalim preto.
_________________________
H2 – Sei, ele tem toda cobertura do IV Exército, nem oficial ele é! E outra, ele é amicíssimo do jornalista, que era editor geral do Jornal da Cidade na época quando houve o golpe de sessenta e quatro, sabia também?
H1 – Eu sei de tudo – Agora, homem mesmo, cabra macho, é Gregório Bezerra, que foi torturado pelo tenente-coronel Villocq lá em Casa Forte. Apanhou até de rebenque...
H2 (Corta) – Mas vamos deixar isso prá lá, o bom é que tem oficiais do Exército que são homens de bem, como por exemplo o tenente-coronel Ruy Vidal de Araújo, comandante do catorze RI, major Joaquim Gonçalves Vilarinho Neto e outros. O coronel Vidal mesmo, é um gaúcho muito educado e espírita, foi ele quem liberou os presos inocentes que conduziam para o 14 (catorze), como foi o caso do Cristo Mulato, que foi preso sem fazer nada, somente por causa de informes mentirosos! São perversos esses militares. O coronel Vidal é tão educado, que pediu desculpas aos presos políticos no 14, por haverem passado a noite em lugar impróprio, os mesmos tinham direito a “prisão especial”. E o major Vilarinho Neto também é um homem muito educado e está prá ser comandante da “meganha”. Eu tenho certeza de que ele será um ótimo comandante!
M1 – Bom, como querem os arbitrários militares que a gente cumpra a lei, com esta esculhambação toda, salário de fome deste? O ministro mandando a gente apertar o cinto, que vergonha nacional!
H1 – O povo, unido, jamais será vencido. Já pensou naquele povo que acompanha “O Galo da Madrugada”, revoltado?
M1 Bastaria a metade daquela gente para se rebelar contra este desgoverno que aí está.
Vozearia.
Neste momento, a praça é subitamente invadida por tropas da polícia, soldados com armas na mão. Sob o comando de um Oficial Superior. Ouvem-se tiros, intermitentes sirenes das viaturas das polícias civil e militar! Kalvinovitch é preso e conduzido para o xadrez.
FECHA A CORTINA
CENA II
CENÁRIO – O mesmo da primeira cena.
Época – Vinte e nove anos passados/1941.
Ao abrir-se a cortina, vemos a plataforma da estação. O Chefe da Estação conversando com uma moça negra e um guarda-freios. Ouve-se o eco do apito da locomotiva e o seu rugido.
CHEFE DA ESTAÇÃO – Quem é esta moça?
GUARDA FREIOS – Foi o coroné Chico quem mandou eu entregar ao “Diabo Louro”, para arranjar emprego prá ela.
CHEFE DA ESTAÇÃO – Diga ao doutor João Roma que estou precisando de uma empregada. (Amável à negra) Quer ficar comigo?
NEGRA (Contente, esperançosa) – Quero, sim senhor, o senhor não vai deixar o “Diabo louro” tirar o meu filho do mundo, vai não, vai?
CHEFE DA ESTAÇÃO – Filho do mundo, que história é essa?
NEGRA (Chorando com soluços) – Estou grávida e quero que o meu filho nasça.
CHEFE DA ESTAÇÃO (Compreendendo) – Não se preocupe que o doutor João Roma é um homem da lei, e não um diabo. (Enérgico ao guarda-freios) Olhe, não chame o doutor de diabo, ouviu? Outra coisa, você realmente ia levá-la prá onde?
GUARDA FREIOS – Chefe, pelo amor de Deus, não diga nada ao... (Gaguejando) dô-dô-dôtô...
CHEFE DA ESTAÇÃO (Corta) – Doutor João Roma.
GUARDA FREIOS (Arrependido) – Eu ia pro-pro-vi-den-ciar na-na rua da-da-guia o aborto.
CHEFE DA ESTAÇÃO (Compreendendo) – Já sei, a moça, de agora em diante, é minha empregada. Prometo não dizer nada ao doutor e você diga ao coronel Chico que tudo foi providenciado.
O Chefe da estação providencia a licença e manda dar partida ao trem, e sai com a negra em direção à sua casa.
GUARDA FREIOS (Retira-se) – Mui-mui-to obri-ga-ga-do!
Ouve-se o eco do apito do trem, distante.
FECHA O PANO LENTAMENTE
CENA III
CENÁRIO – O mesmo das cenas anteriores.
Época – Meses depois.
Ao abrir-se o pano – Casa do Chefe da Estação, o Chefe da Estação conversando com o português e a negra prenhe.
CHEFE DA ESTAÇÃO – Você quer se casar. Ela é uma menina muito direita, e o problema está na vista, você já sabe. a responsabilidade é grande.
PORTUGUÊS (Ansioso, à negra) – Você quer se casar comigo?
NEGRA (Consigo mesma, ansiosa) – Não, não acredito, um homem branco, português, querendo se casar logo comigo, uma mulher de cor, uma negra? (Levanta-se contente) – Muito obrigada, eu aceito, mas com a seguinte proposta: ir residir em Nazaré, para tirar a minha mãe do Engenho. Promete fazer isto?
PORTUGUÊS – Prometo. Viajaremos amanhã bem cedinho, no trem das seis e trinta, combinado? Olhe que tudo está sendo acordado na frente do chefe.
NEGRA (Sorridente) – Combinado.
CHEFE DA ESTAÇÃO – Sejam felizes. Amanhã deixarei vocês no trem.
Saem. Ouve-se uma canção de amor.
FECHA A CORTINA
FIM DO PRIMEIRO ATO
* Escritor, poeta e teatrólogo
* Escritor, poeta e teatrólogo
Errata: "...amicíssimo do jornalista, que era editor geral do Jornal da Cidade..."
ResponderExcluirBoa leitura!
Fico no aguardo ou é apenas
ResponderExcluiruma pequena dose?
Parabéns Zé.
Beijos
Quanta coisa ainda está por ser dita sobre essa época. Quando leio, lembro-me o quanto fui inocente. Só fui dar por mim em 1980.
ResponderExcluirObrigado, queridas!
ResponderExcluirAguardem: PEÇA EM QUATRO ATOS E DEZ CENAS,
BASEADA NOS ANOS 40, 70, 80, 90 e 2000.
Mais uma vez, obrigado Pedro.
Abração do,
José Calvino
RecifeOlinda