O buraco da fechadura
* Por Rubem Alves
Lula: você deve se lembrar – numa das eleições passadas – seus adversários tentavam desqualificar sua candidatura por causa de suas origens humildes. Escrevi, então, um artigo, no qual eu comparava a sua condição com a condição de um outro político de origens humildes e que tinha tirado diploma por correspondência: Abraham Lincoln... Digo isso para explicar o que vou dizer: não é coisa de inimigo. É coisa de quem deseja compreender.
Sou psicanalista. Psicanálise é uma perturbação no olhar. Os olhos de psicanálise sofrem de uma cegueira: eles não vêem as fachadas. Fachadas são o lugar da propaganda: esses programas eleitorais que os partidos compram de profissionais especializados, a peso de ouro, tão bonitos, tão comoventes... Você sabe: política não se faz com realidade; política se faz com imagens sedutoras. O povo ama imagens sedutoras. Mas os olhos de psicanálise não vêem fachadas. Eles vêem bem é através de buracos de fechadura. Buracos de fechadura são buracos bem pequenos através dos quais se vêem os mundos que as fachadas escondem. Acontece que você falou uma coisinha... e essa coisinha foi, para mim, um buraco de fechadura. Pus o meu olho lá, para ver direito. E o que vi me deixou confuso.
Você é homem de partido. Você pensa o pensamento do partido. Você diz o que o partido manda dizer. Aprendi isso a seu respeito por ocasião do plebiscito sobre presidencialismo e parlamentarismo. Você e o Genoíno eram a favor do parlamentarismo. Aí o partido consultou as bases e elas disseram: presidencialismo. Pois no dia seguinte você havia se esquecido das suas convicções da véspera e só falava aquilo que o partido havia determinado. Sei que isso é uma virtude partidária. Mas eu não consigo entender os mecanismos psicológicos que fazem com que um homem deixe de pensar o que pensava porque o partido mandou. Eu compreenderia se você tivesse se calado. Calado, você continuaria a pensar os seus pensamentos mas, por lealdade ao partido, não diria o que estava pensando. Foi o que fez o Genoíno. Por isso eu o admirei. Na Igreja católica isso tem o nome de “silêncio obsequioso“. O Vaticano impôs a pena de silêncio obsequioso ao Leonardo Boff, por falar aquilo que ele pensava. Mas você ultrapassou o silêncio obsequioso: você mudou seus pensamentos e sua fala. Mudou mesmo? Se mudou, esse seria um fenômeno psicológico a ser estudado. Ou não mudou mas fez de contas que mudou? Nesse caso você estaria dizendo algo que não era a sua verdade. O partido proíbe o pensamento divergente? Teremos de “pensar tudo o que seu mestre mandar“, chame-se “Papa“ ou “bases“? E a democracia, onde fica? Faço essas considerações a propósito do “buraco de fechadura“ que sua fala abriu.
Você disse. Se disse é porque é opinião do partido. E tanto é assim que o partido não o desautorizou. Assumo, então, que o que você disse é parte do programa do partido. Segundo os jornais, perante um público de pastores evangélicos, você declarou ser favorável a que o ensino da Bíblia seja feito nas escolas: esse é o buraco da fechadura... Ao fazer isso você tocou a menina dos meus olhos: a educação. Aí, fiquei com medo...
Eu não sabia que você era assim apaixonado pela Bíblia, ao ponto de fazê-la parte do programa educacional do seu partido. Você é mesmo assim apaixonado pela Bíblia? Imagino a alegria dos pastores que o ouviam, vendo-se como futuros professores de Bíblia em nossas escolas públicas... Ou sua declaração teve o objetivo de ganhar votos evangélicos? Essa é uma hipótese perversa que me recuso a levar em consideração pelo simples fato de que ela transgride a posição rigidamente ética que tem sido a marca bonita do PT.
Como você sabe as esquerdas sempre desconfiaram das religiões e seus clérigos e isso por duas razões. Primeiro, as relações confortáveis entre as religiões dominantes e o poder. Segundo, pelo efeito alienante das suas doutrinas. Lembra-se de Marx? Fiquei surpreso pensando que sua proposta representa um desvio das posições clássicas dos partidos de esquerda. Mais do que isso: ela representa um retrocesso em relação às conquistas da democracia liberal, de direita, que tratou de separar religião e estado. E ainda mais: é sabido que tem havido um conflito secular entre o pensamento religioso e o pensamento científico. Não podemos nos esquecer de Giordano Bruno, Galileu e Darwin. E eu que imaginava que o programa educacional do PT seria secular e informado pela ciência! O que vi através do buraco da fechadura me provocou grande confusão mental.
É preciso levar em conta que, se a Bíblia vai ser ensinada nas escolas, por uma exigência democrática também a Torah, o Corão, o Evangelho segundo o Espiritismo, o Bhagavad-Gita, o Tao-Te-Ching...
Sua declaração me fez confuso acerca das propostas educacionais do PT. Essa perplexidade não é só minha. Amigos meus do PT também expressaram o mesmo espanto. O que está em jogo é coerência, ética, credibilidade... O que vi pelo buraco da fechadura não combina com o que está escrito na fachada. Por favor, Lula: me ajude a entender...
(Folha de S. Paulo, 14/05/2002)
* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
* Por Rubem Alves
Lula: você deve se lembrar – numa das eleições passadas – seus adversários tentavam desqualificar sua candidatura por causa de suas origens humildes. Escrevi, então, um artigo, no qual eu comparava a sua condição com a condição de um outro político de origens humildes e que tinha tirado diploma por correspondência: Abraham Lincoln... Digo isso para explicar o que vou dizer: não é coisa de inimigo. É coisa de quem deseja compreender.
Sou psicanalista. Psicanálise é uma perturbação no olhar. Os olhos de psicanálise sofrem de uma cegueira: eles não vêem as fachadas. Fachadas são o lugar da propaganda: esses programas eleitorais que os partidos compram de profissionais especializados, a peso de ouro, tão bonitos, tão comoventes... Você sabe: política não se faz com realidade; política se faz com imagens sedutoras. O povo ama imagens sedutoras. Mas os olhos de psicanálise não vêem fachadas. Eles vêem bem é através de buracos de fechadura. Buracos de fechadura são buracos bem pequenos através dos quais se vêem os mundos que as fachadas escondem. Acontece que você falou uma coisinha... e essa coisinha foi, para mim, um buraco de fechadura. Pus o meu olho lá, para ver direito. E o que vi me deixou confuso.
Você é homem de partido. Você pensa o pensamento do partido. Você diz o que o partido manda dizer. Aprendi isso a seu respeito por ocasião do plebiscito sobre presidencialismo e parlamentarismo. Você e o Genoíno eram a favor do parlamentarismo. Aí o partido consultou as bases e elas disseram: presidencialismo. Pois no dia seguinte você havia se esquecido das suas convicções da véspera e só falava aquilo que o partido havia determinado. Sei que isso é uma virtude partidária. Mas eu não consigo entender os mecanismos psicológicos que fazem com que um homem deixe de pensar o que pensava porque o partido mandou. Eu compreenderia se você tivesse se calado. Calado, você continuaria a pensar os seus pensamentos mas, por lealdade ao partido, não diria o que estava pensando. Foi o que fez o Genoíno. Por isso eu o admirei. Na Igreja católica isso tem o nome de “silêncio obsequioso“. O Vaticano impôs a pena de silêncio obsequioso ao Leonardo Boff, por falar aquilo que ele pensava. Mas você ultrapassou o silêncio obsequioso: você mudou seus pensamentos e sua fala. Mudou mesmo? Se mudou, esse seria um fenômeno psicológico a ser estudado. Ou não mudou mas fez de contas que mudou? Nesse caso você estaria dizendo algo que não era a sua verdade. O partido proíbe o pensamento divergente? Teremos de “pensar tudo o que seu mestre mandar“, chame-se “Papa“ ou “bases“? E a democracia, onde fica? Faço essas considerações a propósito do “buraco de fechadura“ que sua fala abriu.
Você disse. Se disse é porque é opinião do partido. E tanto é assim que o partido não o desautorizou. Assumo, então, que o que você disse é parte do programa do partido. Segundo os jornais, perante um público de pastores evangélicos, você declarou ser favorável a que o ensino da Bíblia seja feito nas escolas: esse é o buraco da fechadura... Ao fazer isso você tocou a menina dos meus olhos: a educação. Aí, fiquei com medo...
Eu não sabia que você era assim apaixonado pela Bíblia, ao ponto de fazê-la parte do programa educacional do seu partido. Você é mesmo assim apaixonado pela Bíblia? Imagino a alegria dos pastores que o ouviam, vendo-se como futuros professores de Bíblia em nossas escolas públicas... Ou sua declaração teve o objetivo de ganhar votos evangélicos? Essa é uma hipótese perversa que me recuso a levar em consideração pelo simples fato de que ela transgride a posição rigidamente ética que tem sido a marca bonita do PT.
Como você sabe as esquerdas sempre desconfiaram das religiões e seus clérigos e isso por duas razões. Primeiro, as relações confortáveis entre as religiões dominantes e o poder. Segundo, pelo efeito alienante das suas doutrinas. Lembra-se de Marx? Fiquei surpreso pensando que sua proposta representa um desvio das posições clássicas dos partidos de esquerda. Mais do que isso: ela representa um retrocesso em relação às conquistas da democracia liberal, de direita, que tratou de separar religião e estado. E ainda mais: é sabido que tem havido um conflito secular entre o pensamento religioso e o pensamento científico. Não podemos nos esquecer de Giordano Bruno, Galileu e Darwin. E eu que imaginava que o programa educacional do PT seria secular e informado pela ciência! O que vi através do buraco da fechadura me provocou grande confusão mental.
É preciso levar em conta que, se a Bíblia vai ser ensinada nas escolas, por uma exigência democrática também a Torah, o Corão, o Evangelho segundo o Espiritismo, o Bhagavad-Gita, o Tao-Te-Ching...
Sua declaração me fez confuso acerca das propostas educacionais do PT. Essa perplexidade não é só minha. Amigos meus do PT também expressaram o mesmo espanto. O que está em jogo é coerência, ética, credibilidade... O que vi pelo buraco da fechadura não combina com o que está escrito na fachada. Por favor, Lula: me ajude a entender...
(Folha de S. Paulo, 14/05/2002)
* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
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