sábado, 10 de setembro de 2011







A luta continua, companheiros!


O bairro Esperança da cidade de Moron/Argentina

* Por Urda Alice Klueger


Lá, como cá, como em tantos lugares por este mundo afora, as injustiças também são grandes. O Império abocanha as pessoas e as mastiga, e não dá a mínima se vão parar debaixo da ponte ou morrer na sarjeta. O Império é forte, é o dono do Capital, e está cheinho de colaboradores, grande parte deles nascidos da corrupção.
Como tantos outros, um corrupto prefeito da cidade de Moron/Argentina (província de Buenos Aires, bem pertinho da capital) há cerca de uns 25 anos deve ter recebido gorda verba para construir casas para os mais necessitados, e enganou a galera de então do jeito que achou melhor: construiu um bairro só de paredes, de casas sem teto, sem piso, sem água, sem luz, sem janelas, sem nada. Claro que sobrou um dinheirão para o bolso do safado e nenhuma casa para ninguém.
Por um quarto de século ficaram aqueles simulacros de casa abandonados até que, há poucos meses, gente muito pobre daquela região, moradores de rua – pois eles existem por toda a parte, até naquele país chamado Estados Unidos, onde sempre nos disseram que todos eram ricos e felizes – organizou-se e ocupou aquele espaço, tentando aproveitar as paredes existentes, sonhando com um futuro lar. Foi uma luta braba, a daquela gente, pois o mato tomara conta daquele lugar e árvores de 25 anos cresciam dentro das paredes dos projetos de casa, e os moradores que vieram tiveram que lutar com uma quase floresta, com bichos venenosos, com espinhos, com a chuva acima das cabeças e com a lama sob os pés, naquele país onde costuma fazer tanto frio!
- Eu arranquei três árvores dentro das minhas paredes – explicou-me uma mulher cansada, fatigada pela vida, mas com o olhar cheio de esperança.
Ela, como todos os outros, além dos bichos venenosos e da vegetação, lutara, também, contra as forças do Capital, o que ia desde a polícia até os especuladores imobiliários, naquele município todos capitaneados por um prefeito que hoje se chama Lucas Gih, e que, com certeza, é da mesma laia daquele outro de 25 anos atrás!
Sem ter outro lugar para ir, os ocupantes daquelas paredes a céu aberto resistiram, agarrados ao seu sonho de um lar, e um cá e outro lá foram cobrindo as casas, quer dizer, as paredes, e fazendo mais esta ou aquela melhoria, e vieram as mulheres e as crianças, e ali passaram a viver sem água, sem luz, sem nada mais que a sua união e os seus sonhos, com a polícia de Moron a infernizar as suas vidas de todas as maneiras que conseguia. O Lucas Gih, então, tripudiou sobre a pobreza daquela gente de maneira atroz: propôs que as pessoas comprassem aquelas paredes quase em ruínas por 2.000 pesos por mês, quando o salário de quem tem emprego fixo é de 1.200 pesos, conforme me contou uma das lideranças. Eu estava lá faz poucos dias e o frio intenso corria solto sob as chapas esburacadas que eram usadas à guisa de telhado.
- A gente comprou o que deu... – justificou-se alguém, diante das estrelas que foram aparecendo pelos buracos quando chegou a noite.
Daí alguém importante tomou conhecimento da situação daquela gente desvalida, nada menos que o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel, e avisou que ia aparecer de visita. Que susto que tomou o Lucas Gih e seus asseclas! Da noite para o dia apareceram alguns postes e eletricidade dentre as casas do bairro Esperança – é bem verdade que a eletricidade é apenas para os postes, mas com aquelas boas lâmpadas acesas, decerto que alguns fantasmas já não terão muita coragem de mostrar a cara por ali como antes!
E Perez Esquivel veio e plantou mais um bocado de esperança nos corações daquela gente sofrida, e estendeu sua asa protetora sobre seus telhados de zinco esburacados, e também vieram outras pessoas decentes para dar as mãos àqueles abandonados pela sorte, e eles continuam lá, resistindo ao Capital, ao frio, aos buracos no teto, à falta de luz, de água, de quase tudo – menos de coragem e esperança.
Então, como cá as coisas são bem como lá, e lá são como cá, acho que há uma frase a ser dita:
“A luta continua, companheiros! “

(Ilustração: foto de Perez Esquivel visitando o Bairro Esperança)

• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.

Um comentário:

  1. Horrível, triste, desumano, Urda e lindo, esperançoso e solidário seu texto. Sempre me emociono nas suas letras, nas suas viagens. Adoro!

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