segunda-feira, 5 de setembro de 2011



Caminhante da Galiléia

* Por Fausto Brignol


- Não há a menor dúvida quanto a isso, companheiro: eu ainda sofro da “doença infantil do esquerdismo”. A única vantagem é que sei disso. Quer dizer, nem tudo está perdido.
- E como, com esses vícios, pretendes contribuir para o movimento?
- Tendo consciência dos vícios, procurando comportar-me a cada dia melhor...
- Tu falas como um budista, um seguidor ortodoxo dos Oito Caminhos à procura da perfeição, pretendendo alcançar o Budhi através do estado de Nirvana, mas tendo antes de atingir o estado de Nirvana e para isso é preciso seguir os Oito Caminhos e para seguir os Oito Caminhos é preciso, etecetera, etecetera e tal. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, cara. Toma um mate. Desculpa a mão: é a do coração.
- Tudo bem, mas é o ;ultimo, porque já estou verde por dentro.
- Ou vice-versa, como a piada da abóbora que os integralistas tanto gostam de contar, não é? Eu sei que tô parecendo um inquisidor te fazendo tantas perguntas, mas é preciso, tu sabes, a vida de vez em quando é coisa séria. Sabe aquela canção do Chico: “Canta a canção do homem/canta a canção da vida...”- algo assim. Mas sem ufanismo, sem frescura, sabendo porque cantar. Não sei se tô conseguindo me explicar; até parece que tô tentando me desculpar, mas não é isso.
- Eu sei, entendo, vai firme.
- Por quê essa fixação na postura correta? O que é a postura correta para ti?
- Tentar extirpar os vícios burgueses e tudo o mais, em resumo.
- E que são vícios burgueses?
- Ora, o espírito de competição.
- E como pensas acabar com o teu espírito de competição se não competires contigo mesmo nesse sentido?
- Não tinha pensado nisso. Mas acho que dá. Não é bem uma competição comigo mesmo...
- Mas é o sobrepujamento, o esmagamento de um lado por outro, ainda incipiente.
- Que está nascendo, mas com muita força.
- Mas, por estar nascendo, não é mais forte que o outro.
- Nem menos forte, pois possui a força do imaculado.
- Tu percebeste a palavra que dissestes?
- Que palavra?
- Imaculado.
- E daí?
- Daí, que é uma palavra de clara influência religiosa.
- É mesmo, eu não tinha percebido, tu vê! O meu subconsciente é mesmo mal-educado.
- Por quê? Tu tá com algum sentimento de culpa?
- Bem, não é mesmo um sentimento de culpa, mas sim a percepção de um detalhe não muito abonador.
- Por quê não? É apenas uma palavra, e o vocábulo, em si, não é mau nem bom. Nada “em si” é bom ou mau. A manipulação do vocábulo é que faz com que ele seja mais ou menos fascista.
- Eu sei. Eu também li Barthes.
- Parabéns. Daí, porque tu não precisa ter medo de uma palavra. A não ser que ela carregue em si toda uma carga intencional.
- E a que eu disse, carregava?
- Creio que não. Ela deve fazer parte daquele lado que queres esmagar, não? Deu pra sentir que não é fácil, não é ?
- Só não é, só não é.
- Tu não podes simplesmente dizer para ti que não és mais um competidor. Mesmo porque, se isso fosse verdade, quem seria mesmo esmagado, sem a mínima piedade, seria tu, não é?
- É. Quer dizer que eu tenho de me conservar de uma certa maneira ainda competitivo, embora sabendo que é um modo de pensar e agir manipulado, que atende aos interesses burgueses?
- Mais ou menos isso. Mas sem máscaras, meias-verdades. Tu tens que ser sincero contigo mesmo. Aquela história de César e de Deus, que já foi explicada por aquele tal caminhante da Galiléia, ou da Judéia, não sei, ou das duas, ou de tantas outras, tanto faz!...Aliás, um cara que eu respeito muito; nada contra a pessoa dele: seria um excelente companheiro. Mas tem mais uma coisa, que talvez seja o principal: e os pequenos luxos, os pequenos confortos?
- Mas eu vivo em um mundo capitalista. Não posso negar a realidade que me cerca. É claro que sempre estarei à disposição dos companheiros e tudo mais...
- Não é o suficiente. Tu tens que te entregar todo. Ficar completamente disponível. Livre de qualquer relação mais íntima que possa te tolher, sem preocupações materiais de qualquer espécie. Tu te entregas todo e nós cuidamos de ti. É a única condição.
- Mas eu não tenho todo esse preparo. Não posso me dispor inteiramente. Tenho pais, mulher, filhos, emprego, compromissos sociais, diversos vínculos, amigos - alguns alienados, mas amigos, enfim - toda uma gama de relações que me seria impossível cortar de repente - nem eu desejaria. Eu posso, é claro, dar minha colaboração de acordo com as possibilidades.
- Não dá. Nós estamos falando da parte séria da vida. A vida verdadeira. E quando se descobre esse lado, ou é a entrega total ou não é nada. A teoria é a prática total.
- Assim é duro demais.
- A vida verdadeira é dura demais.
- Pois é...assim já fica difícil...mas eu não tô desistindo não. Me dá um tempo pra falar com o pessoal, pensar...
- Não há mais tempo. Eu já estou de partida. Ou vem ou fica.
- Bem, eu fico então. Não dá pra sair assim correndo. Tu entende, não é?
- Entendo. A gente se vê.
- Espero que sim. Até. Não leva a mal.
- Até.

• Jornalista e escritor.

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