Mundo real nas telas
* Por Mara Narciso
Chegando à Santa Casa para operar, às três horas da manhã, Dr. Konstantin Christoff vê, pela milésima vez, Irmã Veerle, na sua batalha diária, dando banho nas crianças da Pediatria:
- Irmã Veerle, e se quando a senhora morrer, descobrir que não tem céu? Como vai ser?
Ousadia sempre foi a sua marca de homem talentoso e diferente. A minha mãe, Milena Narciso, já falecida, conviveu muitos anos com Dr. Konstantin, no bloco cirúrgico, onde ambos faziam cirurgias. Ela contava, às vezes, algumas inconfidências ditas durante os atos cirúrgicos. Eu tenho, e ela também tinha, o maior respeito pelas maneiras excêntricas dele, ateu convicto, mas, dizem, foi batizado e se converteu nos seus últimos dias.
Um dos primeiros médicos da cidade de Montes Claros, e também artista plástico, atuou numa instituição religiosa, conviveu com a convicção das freiras, e manteve sua posição rebelde em muitos temas. Era duro num ponto: intolerância a mediocridade e falta de independência intelectual.
O multitalentos era assim: pequena estatura, olhos azuis de búlgaro, cabelos brancos longos, barba, chapéu, cachimbo e um carro esportivo. Sempre fora do lugar comum, Dr. Konstantin só poderia ser o primeiro em muitas coisas. Observando-o a distância, apenas uma vez falei com ele. Mãe, sua grande admiradora, estava do meu lado, quando fui atendida para tirar um ponto cirúrgico que deu rejeição. Além de embelezar o mundo operando bócios, Dr. Konstantin fez diversas reconstruções faciais de lábio leporino, gratuitamente. Milena foi testemunha de um agradecimento apaixonado. Uma criança pobre, já com uns doze anos, tinha uma fenda labial grave, e como é de se esperar, ainda mais naquele tempo do “tudo incorreto”, era vítima de todas as rejeições. Foi operado, e no dia da retirada dos pontos, olhou-se no espelho e agarrou o seu anjo salvador pelo pescoço e deu-lhe um grande beijo. Mãe viu, e nunca se esqueceu. O menino, hoje quase um velho, também não.
Sua obra prima, dizem os entendidos, foi a “Via sacra”, que vi num livro. Uma vez, houve no Automóvel Clube uma exposição de outras pinturas religiosas, com anjos, santos, e Jesus crucificado. E também a misteriosa figura de Irmã Beata, a qual muito conviveu com o pintor, com seu hábito negro, de braços abertos, num gesto protetor às suas parturientes, retratadas como dança-de-roda de recortes de jornal. As mulheres pobres têm bócio, estão grávidas e levam galinhas e abóboras. Genial!
Andei durante 21 anos procurando o quadro que eu gostaria de ver todos os dias da minha vida. Quando o vi, cheio de flores voadoras, num hotel da cidade, fiquei em estado de êxtase. Era de autoria de Konstantin Christoff. Impossibilitada de comprá-lo, encomendei uma recriação, que era outro quadro, tão lindo quanto o seu irmão. Não consegui fazer a permuta. Fiquei inconformada por meses, mas, acabei me apaixonando também pelo novo.
Então, o grande polivalente de talentos morre aos 87 anos, em 21 de março de 2011. Muitos escrevem sobre ele. Contive-me. Acrescentar o quê a tantas homenagens? O cartunista Márcio Leite organiza uma mostra de quadros, para enaltecer o seu mentor. Tenho a honra de emprestar meu quadro de flores para o que Márcio, apropriadamente, chamou de “Jardim de Konsta”. Pintou a parede do fundo de amarelo, e deu uma vida ainda maior àquela maravilhosa pintura. Na parede ao lado, outras flores que não existem, saídas da imaginação do artista completam o belíssimo jardim.
Márcio Leite conseguiu, com a divisão dos quadros por temas, e paredes com cores vibrantes, ampliar a grandeza das obras expostas. E, tantos anos depois, especialmente as suas mulheres, causam impacto ao observador, que não consegue ficar imune às suas mensagens.
Um vídeo com imagens do pintor em seu atelier mostra os seus quadros, num detalhamento surpreendente. Crítico mordaz, nos auto-retratos, adquire as mais diversas formas, como gatos tarados, ou bobos-da-corte, que apresentam num balão seus pensamentos profanos. Também há cartuns referentes às suas participações na revista Playboy, e outros mais.
A exposição “Tudo Konsta” está deslumbrante. Sinto-me impura em atravessar esse quase santuário do audacioso e gigante autoral que foi Konstantin Christoff. Então, a homenagem foi grande, embora o artista tenha com sua obra, ido muito além de onde a nossa vista possa alcançar.
* Médica endocrinologista, jornalista profissional, acadêmica da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
Chegando à Santa Casa para operar, às três horas da manhã, Dr. Konstantin Christoff vê, pela milésima vez, Irmã Veerle, na sua batalha diária, dando banho nas crianças da Pediatria:
- Irmã Veerle, e se quando a senhora morrer, descobrir que não tem céu? Como vai ser?
Ousadia sempre foi a sua marca de homem talentoso e diferente. A minha mãe, Milena Narciso, já falecida, conviveu muitos anos com Dr. Konstantin, no bloco cirúrgico, onde ambos faziam cirurgias. Ela contava, às vezes, algumas inconfidências ditas durante os atos cirúrgicos. Eu tenho, e ela também tinha, o maior respeito pelas maneiras excêntricas dele, ateu convicto, mas, dizem, foi batizado e se converteu nos seus últimos dias.
Um dos primeiros médicos da cidade de Montes Claros, e também artista plástico, atuou numa instituição religiosa, conviveu com a convicção das freiras, e manteve sua posição rebelde em muitos temas. Era duro num ponto: intolerância a mediocridade e falta de independência intelectual.
O multitalentos era assim: pequena estatura, olhos azuis de búlgaro, cabelos brancos longos, barba, chapéu, cachimbo e um carro esportivo. Sempre fora do lugar comum, Dr. Konstantin só poderia ser o primeiro em muitas coisas. Observando-o a distância, apenas uma vez falei com ele. Mãe, sua grande admiradora, estava do meu lado, quando fui atendida para tirar um ponto cirúrgico que deu rejeição. Além de embelezar o mundo operando bócios, Dr. Konstantin fez diversas reconstruções faciais de lábio leporino, gratuitamente. Milena foi testemunha de um agradecimento apaixonado. Uma criança pobre, já com uns doze anos, tinha uma fenda labial grave, e como é de se esperar, ainda mais naquele tempo do “tudo incorreto”, era vítima de todas as rejeições. Foi operado, e no dia da retirada dos pontos, olhou-se no espelho e agarrou o seu anjo salvador pelo pescoço e deu-lhe um grande beijo. Mãe viu, e nunca se esqueceu. O menino, hoje quase um velho, também não.
Sua obra prima, dizem os entendidos, foi a “Via sacra”, que vi num livro. Uma vez, houve no Automóvel Clube uma exposição de outras pinturas religiosas, com anjos, santos, e Jesus crucificado. E também a misteriosa figura de Irmã Beata, a qual muito conviveu com o pintor, com seu hábito negro, de braços abertos, num gesto protetor às suas parturientes, retratadas como dança-de-roda de recortes de jornal. As mulheres pobres têm bócio, estão grávidas e levam galinhas e abóboras. Genial!
Andei durante 21 anos procurando o quadro que eu gostaria de ver todos os dias da minha vida. Quando o vi, cheio de flores voadoras, num hotel da cidade, fiquei em estado de êxtase. Era de autoria de Konstantin Christoff. Impossibilitada de comprá-lo, encomendei uma recriação, que era outro quadro, tão lindo quanto o seu irmão. Não consegui fazer a permuta. Fiquei inconformada por meses, mas, acabei me apaixonando também pelo novo.
Então, o grande polivalente de talentos morre aos 87 anos, em 21 de março de 2011. Muitos escrevem sobre ele. Contive-me. Acrescentar o quê a tantas homenagens? O cartunista Márcio Leite organiza uma mostra de quadros, para enaltecer o seu mentor. Tenho a honra de emprestar meu quadro de flores para o que Márcio, apropriadamente, chamou de “Jardim de Konsta”. Pintou a parede do fundo de amarelo, e deu uma vida ainda maior àquela maravilhosa pintura. Na parede ao lado, outras flores que não existem, saídas da imaginação do artista completam o belíssimo jardim.
Márcio Leite conseguiu, com a divisão dos quadros por temas, e paredes com cores vibrantes, ampliar a grandeza das obras expostas. E, tantos anos depois, especialmente as suas mulheres, causam impacto ao observador, que não consegue ficar imune às suas mensagens.
Um vídeo com imagens do pintor em seu atelier mostra os seus quadros, num detalhamento surpreendente. Crítico mordaz, nos auto-retratos, adquire as mais diversas formas, como gatos tarados, ou bobos-da-corte, que apresentam num balão seus pensamentos profanos. Também há cartuns referentes às suas participações na revista Playboy, e outros mais.
A exposição “Tudo Konsta” está deslumbrante. Sinto-me impura em atravessar esse quase santuário do audacioso e gigante autoral que foi Konstantin Christoff. Então, a homenagem foi grande, embora o artista tenha com sua obra, ido muito além de onde a nossa vista possa alcançar.
* Médica endocrinologista, jornalista profissional, acadêmica da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
Uma bela homenagem a quem um dia devolveu sonhos
ResponderExcluire beleza a olhos tristes...
Lindo Mara.
Abraços
Ele deve estar embelezando com sua arte, alguma parte de outra morada, na qual dizia não acreditar. Pela sua encantadora narrativa, Mara, nota-se que ele merece todas as homenagens, e, principalmente, as lindas palavras ditadas pelo seu coração.
ResponderExcluirParabéns!
Marcelo Sguassábia continua com problemas para postar aqui e me enviou uma mensagem no FaceBook.
ResponderExcluirCopio e colo:
Tudo bem, Mara? Continuo com problemas em inserir comments no Literário. Então deixo aqui meus parabéns pelo seu texto, uma sensível homenagem a este lendário Dr. Konstantin - que realmente deve ter deixado muita saudade. Meu abraço!
O quadro postado é de uma pintura de Konstantin, na qual ele homenageia a Irmã Beata, uma freira que trabalhaou por 40 anos no mesmo hospital que ele, e que neste ano completam-se 100 anos de sua vinda ao Brasil. Chegou a ser cotada para ser beatificada e dizem que fez um milagre. Morreu há 60 anos, mas eu conheci muito a fama dela.
ResponderExcluirMeninas, obrigada pela leitura, atenção e comentários.