quarta-feira, 1 de junho de 2011






Ingrid

* Por Marco Albertim






Ingrid viera de São Paulo, onde fora presa e fugira no meio do tratamento das pernas queimadas por ácido. A polícia vasculhara o Morumbi à cata de uma loura, então em agitação de rua, e de família grã-fina. Tinham seu retrato, lá. No hospital, não trocara confidências com os camaradas intangíveis; imaginara fuga como um enredo de folhetim. Assim aconteceu. A custódia da polícia no corredor. Ela, trancada no quarto, a mãe do lado. As pernas com ataduras, vestiu a roupa trazida pela mãe. Pulou a janela. Puseram-na numa cadeira de rodas, dois camaradas reais. Caminharam, prosaicos, como visitas de rotina. Do lado de fora, um Fusca levou-os a um apartamento no Bexiga. Tratada por médico amigo, saiu com as queimaduras cicatrizadas.
No Recife não era conhecida, mas tinha dúvidas se sua fotografia não fora espalhada. Confortava-a não figurar entre os procurados mais cotados pela polícia. Não mudara a identidade civil, só o rosto, polvilhado de cosméticos. Com a desintegração do grupo a que pertencera, desligou-se de amigos, afins. Pressentia, pois, iminente cilada. Sentia-se paranóica no meio de estranhos.
Integrou-se ligeiro a novo grupo. Se lhes ordenasse invasão de posto policial, não hesitariam se ela se pusesse à frente. Punham-se de ouvidos, eles, esmolando uma palavra que fosse de seu léxico sem lesões.
Encontraram-se para planejar num sítio afastado. A reunião seria no dia seguinte. Ela se deitou sem pijama, com a calcinha, cobrindo-se dos pés à cabeça, no mesmo quarto onde Raquel se deitara e tinha costume de dormir. Não era insone, por toda a noite se deixava velar por camponeses matando patrões, operários ocupando fábricas, estudantes em barricadas. Fantasmas vivos; via-os de dia, examinando feições, músculos, para resgatá-los nos sonhos.
Apareceu na porta dos fundos, enrolada em lençol branco; cabelos soltos, fadiga nos olhos. Falou-lhes com voz baixa, rouca... e autoridade. Apreciavam-lhe qualquer peroração. A rouquidão, ainda não ouvida, aguçou-lhes os sentidos. Beberam, como um ungüento noturno, o juízo sem tropeços de Ingrid. Não evitaram, quando ela se virou para entrar, olhar o lençol fino por onde se via o contorno de suas coxas, interrompido nas nádegas com a calcinha. Durou dois minutos sua aparição.
. - Raquel me disse que não é comum por aqui, reunião de madrugada. A luz pode chamar a atenção. Vocês devem entrar para dormir.
Horácio tinha caderno e caneta, anotando frases, gestos, o que lhe parecia útil para escrevinhar contos.
- Estamos discutindo lingüística. Poderá a revolução fazer da língua, o que fará com a socialização dos meios de produção!? Quero dizer: a língua será posta num tubo de ensaio para ser objeto de experiências?
Ela não respondeu. Antes que Ingrid sumisse dentro de casa, ele insistiu:
- Ingrid! Seu nome não é nada brasileiro.
Ela se voltou.
- Eu sou internacionalista! Minha alma é tupiniquim.
- Pode ser uma bela resposta para um nacionalista que se esconde no tronco dos tupis.
A resposta não saíra de Horácio. Saíra de Miguel, até ali calado, à cata de um mote, ou de uma moita para dar o bote, que nem um guerrilheiro.
- Tenho prática de nacionalista?
Ela perguntou, chispando nos olhos de Miguel; chispando para tirar dali as vísceras do provocador.
- Não. Mas nenhum credo nasce inteiro. Surge potencialmente.
- Estou com sono. Não estou me evadindo da discussão. Temos uma pauta marcada para deliberar amanhã... ou mais tarde. Não demorem, liberais.
Entrou deixando um perfume vago de fêmea que não se deixa capturar; nem na controvérsia, nem no sexo. Entrou deixando-os confusos. Continuaram falando o tempo bastante para ela dormir. Não havia lua. Iluminava-os a luz rala do quintal, na cumeeira da casa. No intervalo entre uma fala e outra, ouviram, vinda de dentro, a voz de Ingrid. Não era sua interlocução conhecida. A modulação da voz, escorreita, soou austera, com fluidez de morto-vivo.
- Silêeeencio...
Ingrid dormira para reencontrar com seus duendes. Em geral, tinha conversação amistosa com eles. Ouvia-os reverente, animosa, perempta. Sonhava com um ou com todos juntos. Dormia profundamente, e a cada quinze minutos soltava duras interjeições de apoio, de rejeição. Estava sonhando com um camponês urdindo tocaia. Ouvira a voz de Miguel. Lembrou-se residualmente de que ele questionara seu internacionalismo. Outra vez o importuno! Pediu silêncio.
Nunca fora inquirida sobre suas singularidades, e em se tratando de hábitos noturnos...
Convinha entrar, inda que suspeitassem ser o espectro de estranhos a razão do gemido de Ingrid. Horácio advertiu:
- Ela não está dormindo, está arrumando a crítica ao nosso comportamento liberal.
-Com razão - rendeu-se Miguel.
- Podemos dormir em paz porque estamos sob a tutela de Ingrid - Alfredo, com a lente grossa dos óculos, ocultava o pensamento sem truques; ocultava para ficar à vontade em sua cobiça de ser capturado pelo devaneio de Ingrid. Sabia que ela nunca dormia só, ou tinha prazer em dormir para urdir, lasciva, a seu modo, a revolução.
Raquel, primeira a se levantar, trouxe o pão da padaria. Viúva, vivia só, tinha saudades dos filhos longes. Aproveitou para fazer a refeição como se estivesse em família. Não entendia de revoluções. Sentia-se feliz em cevar moços dispostos a sacrifícios. Forrou a mesa com toalha quadriculada. Dispôs leite em jarra de barro, cuscuz em bacia de porcelana, ovos na frigideira de ágata.
Ingrid elogiou o cuscuz, elogiou sem confessar que há muito não comia cuscuz de coco com leite doce. Conversou só com Raquel, conhecendo-a. Os outros, camaradas de propósitos, olhara-os um a um nos olhos; preferia crer que não suspeitavam do sussurro com os afins intangíveis.
Alfredo, míope, beneficiava-se dos óculos, examinando-a; nutria-se com a boca, os ouvidos. Sabia quão remota era a chance de tê-la amante, e pinçava cada um de seus traços para reencontrá-los noutra mulher.
Ingrid tinha parelho, não se fazia acompanhar porque viviam ocultos. Melhor viver só, nutrir paixão à furtiva, que serem pegos os dois pela polícia. Encontravam-se em lugar não sabido, com intervalos longos. Queria não chorar, chorava. Trazia na bolsa onde guardava cosméticos para disfarce, uma cueca dele. Tirando, certa vez, o estojo de ruge, o talismã veio preso à tampa. Não se conteve na presença de Alfredo:
- A cueca de meu marido!
Ele desfez a tenção de sitiá-la...
Reuniram-se por todo o dia. Antes que começassem a falar, ela, tal como desconfiara Horácio, increpou a indisciplina à noite. Esperavam. Increpou sem lesões na voz, com mis-en-scène alegórica, sensual. Mantiveram-se reféns de sua censura; experimentavam gozo, agonia. Alfredo, que fora dormir para sonhar como insurreto dos planos de Ingrid, teria preferido a dor do infarto à acusação de pôr em risco a segurança.
- Liberalismo!
Horácio quis fazer a ata da reunião. Ingrid advertiu-o do perigo. A polícia poderia pôr os olhos no registro. Ele queria, queria para narrar a tensão escoada pelo libelo de Ingrid. Conformou-se olhando para as cicatrizes nas pernas dela, do ácido jogado por polícias; as compridas estrias sob a saia de Ingrid, infundiam densidade as suas palavras.
Era o único escritor. Tinha um romance pronto, recusado pelo editor; fora lido por todos, com exceção de Ingrid. Alegara outra prioridade, conforme seu trabalho de revolucionária.
Depois do libelo, expôs o que seria um plano de incitamento popular. Doença infantil! Horácio via em Ingrid o gênero de esquerdismo diagnosticado por Lênin. Não se contrapunha, pelo menos em sua frente. Sem explicação, capitulou sob o discurso abundante... as pernas com as cicatrizes deixadas pelo inimigo.
À noite não houve conversa nos fundos da casa. Raquel, sem nada lhes dizer, matara uma ave cujas penas, raras no sobrecu, davam conta de fartura de carne, de carne e de gorduras. Preparou canja de galinha. O apetite regular fantasiou um cardápio burguês à espera de todos. Não estavam acostumados a comer galinha de capoeira; comeram, repetiram sem pedir licença. A gordura colidiu nos intestinos. Ingrid, a mais diarréica, teve ajuda da erva doce preparada por Raquel; suou e não perdeu a compostura, nem quando sentou as três vezes na latrina de cimento. Os outros não deixaram por menos, mesmo com resíduos de remorsos à passagem pelo local onde Ingrid os censurara. Raquel, dali em diante, conteve os rapapés.
Depois do quinto dia, desfez-se o encontro. Ingrid foi a única a permanecer na casa cuja única vizinhança era um arruado a dois quilômetros, e granjas dispersas de proprietários desconhecidos. Raquel não pôde compartir os dotes de inteligência da hóspede; passava o dia varrendo, cozinhando, tangendo bichos. Ingrid aproveitou para estudar; leu os seis volumes d'O Capital, incluindo prefácios, posfácios e a nota do tradutor. Mais tarde confessaria, num raro rasgo autocrítico, não ter entendido nada, vítima de insofrida pressa.
Dormiu em quarto vazio. Raquel, sono ininterrupto, não ouviu os monólogos noturnos de Ingrid. À leitura de cada livro, ela intuía ser capaz de transmitir o conhecimento a uma assembléia obreira. A assembléia ressurgia toda noite. Os duendes atendiam a seu chamado, insurgentes de rosto difuso. Deitava-se esperançosa de não dormir só, de que era velada por fiéis camaradas incertos. Operários de todo o mundo, uni-vos! Eles davam-se as mãos, apartavam-se para aplaudir, invectivar a favor. Numa noite, Raquel foi ao banheiro, ouviu em frente ao quarto um balbucio estranho. Empurrou a porta para certificar-se de que a casa não fora invadida por ladrões. Ingrid jazia sob o lençol branco, a cabeça enrolada no tecido, nenhum fio de cabelo à mostra; só o rosto vermelho, com os beiços se movendo. Balbuciava para operários de todo o mundo. Mijando, Raquel ajuizou-a freira, com recatos de dia... e ricto à noite.
O retiro durou quinze dias, até às vésperas das eleições para candidatos a deputado. Entre um capítulo e outro d'O Capital, redigiu texto pregando o voto nulo. No Recife, entregou-o a Alfredo e foi para casa. Não deliberaram sobre os termos; demais, ninguém duvidava dos dotes persuasivos de Ingrid. Nem Horácio!
Houve dificuldade para entender sua letra hieroglífica. Alfredo, maquinando conjuras, conjuras e o amor impossível, decifrou traço por traço. Sorriu feliz ao final. Horácio, suando:
- Devia exercitar a escrita, nossa orácula. Onde aprendeu a escrever assim? Com egípcios, numa pirâmide.
Os dois passaram a noite acordados, imprimindo cinco mil cópias do texto, num mimeógrafo a álcool.
- Teremos cinco mil votos nulos e duas tendinites - Era azedo, Horácio.
- Não quero ser preso... nem ficar aleijado para não poder destravar uma matraca. - Você tem dedos ágeis, Alfredo. Poderá destravar qualquer pau-de-fogo. Só não poderá detonar o fogo de Ingrid.
-!
- Isso mesmo! Estou dizendo que nossa tutora tem mercúrio nas veias. Não precisa que lhe acendam o pavio. Ela é chama, toda chama; uma labareda que não se deixa queimar e queima todo mundo. Está doido por ela, não é mesmo?
- Ela me atrai.
- Tenha cuidado. Ela é fogosa mas pode lhe jogar uma ducha de água fria que lhe deixaria impotente por um bom tempo. Ela é fria, cruelmente fria nas verdades.
Às quatro da manhã não resistiram ao sono. Interromperam para deitar. Havia duas camas no quarto dos fundos. Acordaram às nove para continuar. O pai de Alfredo não tinha costume de almoçar em casa; vez ou outra mudava de idéia. Os dois torciam para o velho se manter fiel ao hábito. Na cozinha, o relógio de parede badalou o meio-dia. Sentiram fome, apreensão. O portão da frente rangeu. O velho entrou. Os dois pegaram as volantes e puseram numa sacola. Pularam o muro para o quintal vizinho. Não havia ninguém no terraço, onde teriam que passar para ganhar a rua. Foram surpreendidos pelo dono, um velho troncudo, zeloso de sua posse.
- O que é isso? Vocês estão invadindo minha casa!
Alfredo conhecia-o, e nunca trocara palavra com ele.
- Desculpe, meu senhor. Só fizemos isso para evitar um constrangimento. Há uma visita em minha casa que nós queremos evitar. Desculpe.
- Era o que faltava...!
A panfletagem, em bairro operário, seria um apêndice das assembléias intuídas por Ingrid. Redigira o texto, fiel à confiança que os imaginários camaradas tinham nela. As volantes, em maços de cinco, dez, seriam postas sob a porta de cada residência numa rua larga, sem calçamento, cortada por um canal, na Macaxeira. O texto era assinado vagamente por Ação Popular.
Horácio teria que trabalhar na manhã seguinte. Foi dispensado; com alívio, porque também se pouparia da tagarelice de Ingrid. Alfredo e Ingrid, Miguel e Alice teriam que se fingir de namorados; braços dados ou sobre os ombros. O primeiro casal seguiu a Rosa e Silva; o segundo, a avenida Norte, a partir de Casa Amarela. Cada um em sua artéria parou num boteco vazio. As mulheres se abstiveram, mas os homens entornaram cachaça pura, para o caso de abordagem da polícia, e serem confundidos como boêmios da noite.
- Pura! Sem nada! Quero um tira-gosto - queixou-se Miguel, queixou-se e comeu um bolinho de bacalhau com cheiro de mofo.
Alfredo bebeu sem se queixar. Fez do copo o instrumento de imolação por poder tocar em Ingrid, e não celebrar a posse. Ela, soberana, submissa a Alfredo, saudosa do parelho, confidente de duendes.
Encontraram-se no lugar combinado. Cada casal percorreu um lado da rua. Não demorou a distribuição dos papéis. Ingrid ficou com remorsos por não terem trazido mais cinco mil. O lugar estava deserto. As ruas, com buracos, fendas, dificultavam o tráfego de camburões. Às duas, foram para a rodovia à beira da mata; pegaram o primeiro bacurau. Com as sacolas vazias, desenvoltura, mantiveram a aparência de casais. Saltaram na Riachuelo, vazia para acolher o prazer de cada um. Ingrid, ligeira, livrou-se do braço de Alfredo; livrou-se, pulou feito um saltimbanco.
A panfletagem chamara a atenção da polícia. O bairro encheu-se de meganhas, olheiros. Ingrid comemorou a seu modo, com o parelho, em lugar incerto, longe da morrinha do Capibaribe. Seu olfato e as cicatrizes tinham alergia à lama do rio.
Decidiram, todos, sumir de circulação até que os tiras relaxassem a vigilância. Alice recolheu-se em casa, com o marido desconhecido, sem dar pistas da moradia. Horácio, Alfredo e Miguel deram jeito de não se recolher, porquanto solteiros. Reuniam-se às segundas, dia morto, no fim da Regeneração, Água Fria. À noite, o velho João servia-lhes um caldo grosso de feijão, com camarão, azeitona, azeite e um molho grosso, de pimenta, que chamava de barro da Transamazônica. Caldo regado a cachaça. Velho histrião, João, vendeiro hábil, stalinista enrustido. Tinha versão própria para o fim de Trotsky. Quando o bar esvaziava, dizia aos três:
- Stálin perdeu a paciência com Trotsky. Foi provocado muitas vezes. Provocação pessoal! Chamar Stálin de vacilador! O marechal de aço! No começo, foi paciente. 'Pare com isso, Trotsky... Pare com isso, Trotsky.' Stálin perdeu a paciência, e decidiu pela execução do provocador.
- Com um machado, seu João? Mercader usou um machado! - interveio Horácio.
- Stálin era um revolucionário prático. Não tinha preocupação com estética!
- Não está provado que foi Stálin o mandante da morte de Trotsky - ponderou Miguel. - Está provado que tinha interesse no sumiço do provocador Trotsky.
- Bem dito, rapaz. Mercader era doido, ainda é. Mora em Cuba. Não atrapalha nem ajuda a revolução no Caribe. A história não julgou Mercader, julgou Stálin porque enfrentou a besta nazista.
Feito ave de rapina, o velho João dava o bote e recuava para tirar proveito da impressão deixada. Sentencioso, perempto, mesmo não tendo com quem conversar, nutria-se feliz com as convicções. Os três, sós, voltavam a assuntar a faina secreta. Horácio especulou sobre o segredo do tempero de seu João.
- Ainda canto a cozinheira de seu João. Como mexe na panela... É uma maga, uma feiticeira por quem me deixaria envenenar porque já estou encantado. Não tenho casa para onde levá-la.
- Ela desconfia de seus propósitos? - quis saber Alfredo.
- Desconfia. Do mesmo modo que Ingrid desconfia dos seus. As mulheres do povo têm mais células olfativas que as filhas da burguesia, mesmo a pequena-burguesia rebelada como nós.
- Cante-a de uma vez. As mulheres do povo impacientam-se com mais freqüência quando se trata de sexo.
- Estou esperando...
- ... que amadureçam as condições para a revolução popular - Miguel pilheriou.
- Que ela ponha um camarão a mais no meu caldo. Mordisco o camarão para comê-la depois. Lá mesmo, no sótão onde moro.
- Não tem medo de se pôr sob a tutela de Ingrid, e vacila em fazer a corte a uma cozinheira do povo. Estude Mao - Sobre as contradições no seio do povo - sugeriu sério, chistoso, Miguel.
- Tomasa, o seu nome é Tomasa. Quero dançar a habanera com ela, uma salsa. Depois me esconder em suas coxas.
- O que mais lhe preocupa, Horácio? A revolução ou o futuro que reserva a sua luxúria? - quis saber Alfredo.
- Preocupo-me com a estética do amor. Tenho tempo para pensar nisto. Todos temos que pensar nisto. Você pensa e nega com a lente dos óculos. Ingrid pensa... ou não?
- Ela se preocupa com a estética da revolução. É uma mulher sensual... e age como se não tivesse útero. Não consigo vê-la dominada por um macho viril, urrando com a penetração. Parece um autômato... e olha para todo operário como se fosse um pênis místico!
- O que estará fazendo nossa tutora, agora? - especulou Horácio.
- Fornicando, certamente - interrompeu Miguel - Sem a afetação que rouba de Rosa Luxemburgo.
- Está dizendo que nossa tutora é uma impostora?
- Não. Tenho confiança nela. Mas acho que esconde alguma fraqueza. Mostra-se e ao mesmo tempo se esconde. É o nosso fantasma da ópera. Ela poderia assumir-se de vez e seria uma mulher integral.
- Uma revolucionária sincera.
Ingrid, com o olfato e as cicatrizes distantes deles e do rio infecto, imprecava, doce, contra a flacidez do pênis do parelho, nos intervalos dos coitos. Tinha o costume de montar. Só depois do gozo, permitia ser montada. Deixava-se penetrar com violência, por prazer, por vindita social. Sob o parelho, recuperava a energia, em seguida montava-o. Um mês no desvario. À noite, descansando, tramava meio de voltar a São Paulo, ocultar-se com ele em bairro de raça variada; na Mooca, indistinta entre a multidão ruidosa.
No reencontro, Raquel recebeu-os com os rapapés de costume. Ingrid quis saber se algo incomum ocorrera depois que saíram.
- Só uma vez na padaria. Me perguntaram quem eram os moços com sacolas nas costas que tinham saído de minha casa para pegar o ônibus na rodovia. Eu disse que eram estudantes evangélicos, fazendo retiro.
- Menos mal. Ainda assim, ruim. Chamamos a atenção.
Alice chamou-os a um canto. Na lateral da casa, em declive, tinha-se acesso a uma clareira. Sentaram-se. Ela perguntou se não seria o caso de sair dali, ou mesmo suspender a reunião. Contou que fora seguida no Prado por um estranho, seguida em três quarteirões; no quarto, uma Kombi estacionou de seu lado. Dois homens desceram para pegá-la. O motorista não tivera o cuidado de desligar o motor, e deixara a porta aberta. Ela entrou no portão de uma casa, esbarrou com uma mulher no quintal. Faltou-lhe idéias para forjar desculpa. Confessou que era estudante contra a ditadura, e estava sendo molestada por dois polícias. A mulher disse para ela seguir pelo portão de trás, com acesso à avenida Caxangá. Na calçada, pegou um ônibus, safou-se. A mulher teria dito que em sua casa ninguém bateria em estudante.
- Tem certeza que não foi seguida até aqui?
- Tenho. Mas no caso a certeza nunca é absoluta.
Ingrid, assuntando no que fazer:
- Não podemos sair daqui em grupo. Seria muito arriscado. Também não vamos abrir a reunião agora. Vamos relaxar. Parabéns, Alice. Você teve iniciativa na frente do inimigo. Não se intimidou.
À noite não sentaram no terraço. A luz permaneceu acesa para não fugir do costume. Na sala, sob a claridade de três candeeiros, sentaram-se num canapé velho, espreguiçadeiras, bancos sem encosto de trás. Ingrid, atenta à dócil viuvez de Raquel, ria, ria como nunca tinham visto.
- Não pensa em casar outra vez, Raquel?
- Não gosto de lavar cueca de velho.
- E um namorado?
- Esse não lava a cueca, mas é mais prático.
- Você não vai a festas?
- Vou aqui, no São João. Não danço quadrilha. Me divirto na fogueira, faço promessas. Já quiseram me casar com o comissário. Deus me livre! Me obrigaria a passar graxa em seu sapato.
Ingrid não perdeu a rédea da conversa. Bocejou sono. Raquel disse que arrumaria a cama. Ela não deixou, correu para o quarto. Depois, quando voltou da latrina, deu boa-noite aos outros, estimando cuidados. Alice deitou-se no quarto vizinho, só. Horácio, Alfredo e Miguel, no último, junto à cozinha. Relaxada por não ser viúva, Ingrid dormiu. Havia tempo para nova confabulação com os duendes.
Do lado de fora, grilos, corujas, morcegos. O sopro do vento entrando nos telhados, feito sinfonia, embebia a casa de perfumes pluviais. Dormiram, dormiram rendidos ao culto devoto dos ribeirinhos, inda que não cressem na guarda do padroeiro. Raquel, antes de deitar, balbuciou oração. Ingrid deu-lhe boa-noite, boa-noite para encobrir a crença incréia. Prostração. Fechou os olhos com as pernas dissolutamente abertas, íntima de duendes. No hospital, o queimor das pernas não permitira visita dos duendes. Agora, com cicatrizes duras, oleentas, uma leve coceira nos pés ajudou-a a se levantar. Abriu a porta do quarto, dos fundos, do banheiro, sem ruído; tão silenciosas quanto seus pés no chão frio. Não acendeu nenhuma luz; só a do quintal, acesa. Não sentou para mijar, ficou de frente para a latrina, olhando a caixa de descarga. Os cabelos, soltos, cobriam os lados do rosto, a frente arqueada.
Alfredo, inadvertido, advertido por um duende, levantou-se para mijar. Não estranhou a porta de trás semi-aberta, imputando culpa a Horácio, Miguel... ou a Ingrid lucubrando sublevações. Caminhou olhando para baixo. Pôs o primeiro pé no banheiro, ergueu o rosto, viu Ingrid de costas, nua, parada, gesticulando vagamente as duas mãos. Deu meia-volta, ele; e estranhou-a não ter visto ou sentido sua presença. Voltou-se. Ela vinha andando em seu rumo, olhos fechados, cabeça baixa, movendo os beiços. Sonâmbula! Cruzou a pequena distância entre a porta do banheiro e a dos fundos da casa. A penumbra não escondeu o tufo maciço de cabelos no ventre. Hirto, lábios pedintes, acompanhou-a com a vista até que ela entrasse no quarto. Mijou ali mesmo, Alfredo, e correu para despejar o resto da urina na latrina.
Afortunado... Deitou sem acreditar na matéria de seu corpo, crendo-se fauno no sítio de Raquel, capturado ao devaneio de Ingrid. Vira-a transfigurada, fauna de fato, à procura de gnomos. Não dormiu para não desfazer a fábula. Tinha o costume de ir ao banheiro sem uso dos óculos, em casa. Familiar às gentilezas de Raquel, fizera-se useiro do banheiro, sem precisão dos óculos. Os sentidos e os duendes petrecharam-no. Ingrid surgira à noite para jamais sair do transe dele.
De manhã, ela foi com Raquel comprar o pão. Quis maquiar-se. Foi advertida de que ali, àquela hora, ninguém usava pinturas no rosto. Convinha conciliar-se com os costumes, inda que contrariando recomendação da turba do sonho. Queriam-na incendiária, para espoucar milicos.
Alfredo acomodou-se à espreguiçadeira para não andar às tontas na casa... ou fora, entre troncos, arbustos, bichos. Nunca se sentira tão protegido com os óculos, fingindo conjuras. Horácio, com papel e lápis, sentara-se na clareira, sob um jenipapeiro; fazia emendas para enxertar no romance. Miguel não gostava de sair do quarto, antes de o grupo juntar-se; provocador, apreciava atear fogo à controvérsia depois do começo. Alice era de pouca opinião, esperava que Ingrid terminasse de falar, para arrastar com esforço o léxico pobre. Enquanto Alfredo esteve na espreguiçadeira, ela foi ao banheiro; asseou-se sob jorros de um caneco abastecido em tina cheia d'água. O ruído, miúdo, ouvia-se da sala. Alfredo reavivou o transe da nudez mística de Ingrid. O lugar, agora, estava ocupado pelo corpo desmilinguido de Alice.
Ele jurou poetizar a aparição de Ingrid nua. Estava certo de que o recurso à prosa, purgaria-o do transe.
Nos dois dias, não assuntaram amenidades por causa da vigilância de Ingrid. Ela entediava-se quando a tensão do conluio se desfazia. Decidiram voltar à Macaxeira, agora para expor em outra volante, o desgaste sofrido pelo governo com o voto nulo. Não marcaram data, para efeito de segurança. Encontrar-se-íam outra vez. Ela redigiu o texto, discutiram-no. Não mencionava imprecisas armas, e sim brigadas populares de autodefesa.
- Não temos nenhuma arma! - objetou Horácio.
- Não. Mas estamos exercitando a perspectiva do confronto armado!
Doença infantil! Outra vez Horácio teve engulhos.
Os panfletos foram distribuídos na mesma rua, pouco antes de o sol nascer.
Outra reunião. Ela considerou, fria, ter cumprido as atribuições que lhe couberam. Queria viajar, as mesmas obrigações noutra cidade. Não disse, e todos suspeitaram de sua aversão à morrinha do Capibaribe.
Esperou dois meses até que mandassem alguém para substituí-la. Viajaria sem dizer para onde; ela e o parelho, conjurando nos sentimentos.
Antes de partir, teria encontros individuais em artéria deserta. Voltar à casa de Raquel tornara-se temerário. O propósito era ouvir o julgamento que fariam de seu desempenho. Ouvir e recomendar o que deviam fazer dali para a frente, conforme o perfil de cada um.
Despediu-se de Alfredo na capela do cemitério de Santo Amaro, à tarde. Saiu pela porta frontal, rumo ao portão do cemitério. Deveria manter-se sentado, até que ela sumisse sob o gradil de setas de ferro. Sentou-se, levantou-se, viu a silhueta de Ingrid se amesquinhar entre as palmeiras. Custou a acreditar que seria a última chance de apreciar seu passo estugado. Não se conteve, gritou:
- Ingrid!
Nunca gritara o nome dela, nem que as normas de segurança permitissem. O grito evadiu-se no vento. Ela ouviu, ouviu e não olhou para trás. Custodiada por camaradas intangíveis, atravessou a rua para perorar a operários com a cumplicidade presente do parelho.
Alfredo cumpriu a promessa de fazer poesia à noite que lhe presenteara o corpo sem roupa da tutora. Escreveu sua dor com a mesma crueza com que ela imprecava contra o desleixo, o liberalismo. Mostrou-a, desbrioso, a Horácio, na frente de Tomasa refém de sua estética.
Alfredo ouviu, num canto, a habanera que Horácio dançou com Tomasa.

*
Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

Um comentário:

  1. "(...)Reuniam-se às segundas, dia morto, no fim da Regeneração, Água Fria. À noite, o velho João servia-lhes um caldo grosso de feijão..." Eita, Albertim, me fez lembrar (anos 50/60) existia o Caldinho de Água Fria, o dono realmente era seu João (falecido). Ele colava nas paredes inúmeros cartões de visita dos frequentadores. Ele próprio servia a cana e o caldinho (Ele&Ela) colocando no caldinho de feijão o que ele chamava o barro da transamazônica (Patê de galinha), Pirauira (raiz que tira o cheiro da aguardente ingerida) e sangue da mulher amada (Ketchup)rsrs
    Abraços saudosos do,
    José Calvino
    RecifeOlinda

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