

O frevo chama o passo
* Por Leonardo Dantas Silva
Em todos os carnavais aparecem sempre os estudiosos com novas teorias sobre este ou aquele aspecto. Agora é o chamado Frevo de Palco, quando melhor se aplicaria a expressão já consagrada de Frevo Sinfônico, para justificar o andamento e apresentação dos três vencedores na categoria de “Frevo de Rua” no concurso da Prefeitura do Recife.
Seria um frevo só para ser ouvido, assistido ordeiramente como se estivéssemos no Carnegie Hall de Nova Iorque, nunca dançado (!)
“Vale ressaltar que todos assistiram ao espetáculo sem fazer o passo, atentos e em silêncio com seus olhares fixos de perplexidade pelo desempenho da orquestra, intervindo somente para os aplausos merecidos e entusiasmados”, assim descreve o compositor Luiz Guimarães.
Entendo eu, no meu peito de desafinado onde bate um coração recifense, que, no nosso frevo, a coreografia que chamamos de passo e a música instrumental, consagrada como frevo, não podem vir dissociadas.
Observava Luís da Câmara Cascudo que “no mar do frevo, cada peixinho nada de seu jeito”; acrescentando: “Frevo, glória pernambucana, autêntico, positivo, real, nas músicas de sua dinâmica contagiante e mágica. No passo, cada bailarino executa ad libitum a reação mímica da interpretação pessoal. Música determinante de agilidades inesperadas, piruetas famosas, na sombra simbólica das sombrinhas borboletas”.
Esta é, segundo Guerra Peixe, uma característica do frevo do instrumental, no seu aspecto dança que o pernambucano denomina de passo: “e aí encontramos um fenômeno único na música popular brasileira. É a única dança em que o dançarino dança a orquestração. Cada volteio de um instrumento é acompanhado por um passo ou uma firula [volteio, rodeio] do passista. É uma dança individual, com a maioria dos passos tradicionalizados, mas que cada um executa a sua maneira”.
Dentre os muitos gêneros do frevo, o frevo-de-rua, é o de maior importância, pela sua identidade coreográfica com o passo. É nele que o compositor vem demonstrar todo o seu conhecimento musical, a sua forma de compor e de criar frases utilizando-se dos metais (trombones, trompetes, tubas) em constante diálogo com as palhetas (clarinetos, requinta, saxofones) de uma orquestra de ritmos carnavalescos.
Acompanhando o seu andamento e fraseados, bem como os cantos e contracantos entre palhetas e metais, o passista (dançarino do frevo) cria, no ato, a sua coreografia própria, sem, contudo, agredir o que o compositor escreveu na pauta musical, segundo ensina Guerra-Peixe, “é a única dança que o dançarino dança a orquestração”.
É o frevo a mais importante expressão musical popular, por um simples fato: é a única música popular que não admite o compositor de orelha. Isto é, não basta saber bater numa caixa de fósforos ou solfejar para compor um frevo. Antes de mais nada, o compositor de frevo tem de ser músico. Tem que entender de orquestração, principalmente. Pode, até, não ser um orquestrador dos melhores, mas, ao compor, sabe o que cabe a cada seção instrumental de uma orquestra ou banda. Pode, inclusive, não ser perito em escrever pautas, mas, na hora de compor, ele sabe dizer ao técnico o que escreverá a pauta, o que ele quer que cada instrumento faça e em que momento. Se ele não tiver esta capacidade musical não será um compositor de frevo. Em suma: o compositor de frevo tem que ser um músico que, pelo menos, saiba fazer os apontamentos, distribuindo as notas pelos naipes principais de uma banda. Assim mesmo, este tipo de compositor, no frevo, é uma raridade. A maioria dos principais compositores de frevo é composta de músicos completos, que conhecem música e são estudiosos do assunto – o caso de Capiba e de Nelson Ferreira.
Provavelmente, continua, o frevo é a única música no mundo, entre os gêneros populares, que já nasce orquestrada. Podem citar o jazz como outro gênero. Eu já acho que não. O jazz é uma improvisação organizada. No frevo o autor escreve a música. Papel e lápis na mão e escreve a orquestração. Originalmente, o frevo era executado por um conjunto conhecido por fanfarra. Era música exclusiva dos instrumentos de metais: pistões, trombones, tubas, trompas, bombardinos e outros mais. Não havia saxofones. Depois, com a evolução natural, apareceram os saxofones e clarinetos, embora sempre em pequeno número. E até hoje há predominância de metais. Certa vez eu ouvi em um baile do Recife um conjunto que era composto por dois pistões, dois saxofones, uma clarineta, uma requinta, cinco tubas e quinze (!) trombones. E nada é mais característico no frevo do que o som nobre e pujante dos trombones.
E assim conclui Guerra Peixe, estudioso da música brasileira que atuou como regente da grande orquestra da Rádio Jornal do Commercio do Recife (1949-52).
Mas, ao contrário do que ensinam alguns autores, o frevo-de-rua, ou melhor classificando o frevo instrumental, tem seu dinamismo próprio, não se atendo aos dezesseis compassos dos frevos tradicionais, como ensina o maestro Edson Rodrigues, professor do Conservatório Pernambucano de Música e ex-regente da Banda da Cidade do Recife, além de compositor e arranjador premiado em vários festivais, em depoimento pessoal:
Dizer-se que um tipo de música qualquer, desde que dinâmico, se caracteriza por certa fórmula, é cabível, mas afirmar-se rigidez estrutural é negar-se a sua dinamicidade. É o caso do frevo-de-rua.
Pode-se dizer que a sua composição é do tipo ABC – Às três da tarde, de Lídio Francisco da Silva –, onde a primeira parte [A] não tem ritornelo, em relação a segunda [B e C que aparece repetida]; ou ABB, exemplo do frevo Último dia, de Levino Ferreira, onde somente a segunda parte se repete, a exemplo dos frevos tradicionais, com dezesseis compassos na primeira parte e igual número na segunda.
Um caso raro, porém possível, vez por outra é o tipo A+BBCCDD; a exemplo da composição de Levino Ferreira Vassourinhas está no Rio, onde A é a fanfarra inicial, B a primeira parte, C a segunda parte e D, a terceira parte, todas repetidas, à exceção de A; vide o disco Mocambo, O Frevo Vivo de Levino Ferreira, gravado pela orquestra de José Menezes em 1973 (LP 90008).
Gênero dinâmico, mutante, porque vivo e estudado no sentido de que se lhe acrescentem novos elementos, o frevo não pode ter parâmetros estanques no que toca ao número de compassos que devem constituir a sua melodia. Exemplos que se fazem arbitrando em 16 compassos a bitola melódica desse tipo de música orquestral é, quando muito, temerário.
Já em 1905, Juvenal Brasil compõe de forma singular A Província, cuja primeira parte tem 12 compassos e, o que é mais raro, inicia a sua composição no tempo forte do compasso. Setenta anos depois, Lourival Oliveira compôs Pilão Detado procedendo de igual modo, com a diferença de que no seu frevo há 20 compassos a mais, formando, assim, 32 compassos na sua primeira parte. Rogério Andrade, campeão do primeiro Frevança (1979) com o frevo Carnaval em Bom Jardim, optou pela forma tradicional com 16 compassos na primeira parte; enquanto Levino Ferreira, o saudoso “Mestre Vivo”, em frevo executado no mesmo concurso, inscrito por sua família depois de sua morte, foi vitorioso com O Rei do Passo com 25 compassos em sua primeira parte [9+16]; a sua contagem ímpar, porém, não quer dizer que se trata de um frevo quebrado. No nono compasso, há um breque [parada] complementando o décimo compasso, antes de iniciar a segunda parte com 16 compassos.
Outros exemplos podem ser lembrados: Último dia, de Levino Ferreira, do tipo ABB; com 24 compassos, em sua primeira parte [A] e 18 compassos em sua segunda parte [B]; Às três da tarde, de Lídio Francisco da Silva (Lídio Macacão), do tipo ABC, com 12 compassos em sua primeira parte, 16 na segunda parte e 15 em sua terceira parte; Isquenta Muié, de Nelson Ferreira, do tipo AABB, com 24 compassos na primeira parte e 24 na segunda parte. Caracterizado por sua primeira parte, chamada de introdução, seguida de uma “chamada”, ou “preparação”, antecedendo a segunda parte.
Os compassos que servem de “ponte” às respectivas partes, não foram contados para efeito das apreciações aqui contidas, o que significa dizer que, levados em conta tais compassos, nenhum frevo se fará à métrica de 16 compassos para cada uma das suas partes.
O frevo instrumental, que arrebata a alma e os sentidos levando as multidões à loucura, desperta assim o interesse dos apreciadores da música e, por vezes, levam ao pesquisador a elaborar tais análises em sua estrutura melódica e de andamento.
Mas, para o folião endiabrado, aquele que vê no frevo uma válvula de escape do extravasamento de sua alegria, ou, como na receita de Luiz Bandeira, "quem é de fato um bom pernambucano, espera um ano e se mete na brincadeira", ficam os versos do poeta Austro Costa:
"Não sei se devo, ou não devo.
Dizer, mas digo afinal:
– Se até Roma fosse o Frevo,
Teria a Bênção Papal!"
• Jornalista e escritor do Recife/PE
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