Radares
* Por João Batista Melo
Raras vezes a questão do cumprimento das leis ocupou tanto espaço na mídia como nos tempos atuais. Denúncias de corrupção se multiplicam como uma criação de coelhos, eventos como o da onda de violência em São Paulo levam a cobrança de rigor no cumprimento do código penal. Enfim, mais que nunca os brasileiros (e a mídia brasileira) exaltam a necessidade do cumprimento das leis para que a sociedade atinja maiores padrões de justiça e segurança.
Estou absolutamente de acordo. Mas não resisto a observar que a obsessão pela legalidade de muitos brasileiros (e brasileiras) termina quando as leis afetam a sua visão pessoal de como devem funcionar as relações sociais. Isso fica quase patente na questão do trânsito e, em especial, na sua corporificação mais odiosa: os radares. Existe um código de trânsito (relativamente novo, aliás) em vigor no País, que define determinados limites de velocidade. A única forma de se averiguar se os cidadãos estão cumprindo a lei depende de um aparelho tecnológico chamado radar.
Minhas reflexões atingiram o clímax ao ler, há algumas semanas, notícias falando sobre uma rodovia do Rio de Janeiro, que foi objeto de uma ação por parte de um advogado solicitando a retirada dos radares que se proliferam pela estrada afora. Nada anormal, na medida em que num sistema democrático todos podem ajuizar o que bem entenderem. O mais curioso, na verdade, foi que a procuradoria responsável pelo julgamento solicitou um parecer técnico para susbsidiar sua decisão. E aí vem o mais bucólico: o parecerista defendeu a posição de que os radares ameaçam a segurança dos motoristas, pois estes ficam estressados ao terem de prestar atenção onde estão escondidos os ameaçadores aparelhinhos, descuidando do trânsito em si. É como se algum ladrão alegasse que as leis que definem o roubo como um crime lhe provocassem estresse no exercício de sua atividade.
Como quase todos os problemas da sociedade, o trânsito é fundamentalmente uma questão de educação. E educação envolve vários aspectos: formação cultural e ética, informação, controle e justiça. Saí do Brasil pouquíssimas vezes. Mas, lá fora, inclusive em vizinhos latinos como a Argentina ou o Chile, pude constatar, por exemplo, que somente no Brasil é dominante o hábito chimpanzelesco de buzinar e piscar faróis.
Na outra ponta da questão, encontramos uma justiça lenta e a ausência de uma fiscalização ostensiva. Isso sem se falar nos limites da própria legislação, como quando se exige que seja comunicada a existência de radares nas vias públicas. Mais uma vez, é como avisar aos ladrões onde a polícia vai estar e dar batidas no final de semana.
Na verdade, a violência no trânsito somente vai ser equacionada quando a sociedade se conscientizar do problema. Quando associações civis apoiarem ações judiciais em massa contra motoristas irresponsáveis (cuidando para distinguir acidentes causados por direção intencionalmente perigosa daqueles provocados por fatalidades). Quando a mídia abrir espaço para que os cidadãos – que não podem multar os outros motoristas – possam ao menos denunciar os abusos cometidos por todos os lados. Quando todos nos conscientizarmos de que o cumprimento das leis vale até para aquelas situações que nos incomodam, e não apenas para os políticos, publicitários e funcionários públicos. Quando, enfim, concluirmos que vivemos no mesmo espaço e que, até para garantirmos a nossa sobrevivência e a dos que nos são caros, precisamos aprender a conviver em coletividade.
*Mestre em Multimeios, pela Unicamp, fez crítica de cinema e literatura para diversos jornais e dirigiu os curtas “A quem possa interessar” e “Tampinha”. É autor das coletâneas de contos “Um pouco mais de swing” (Rocco), “As baleias do Saguenay” (Rocco) e “O Inventor de Estrelas” (Lê) e do romance “Patagônia” (Rocco), e participou da antologia “Geração 90: Manuscritos de Computador” (Boitempo).
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