sábado, 30 de abril de 2011







Outono na Barra do Camacho - Quase Junho

* Por Urda Alice Klueger

Hoje, enquanto o meu amor continua lá do outro lado do mundo, no Norte onde agora é Primavera, tomei eu o rumo do Sul, afastei-me fisicamente ainda mais dele, mas diria que a energia que me une àquele Príncipe-passarinho só fez aumentar no decorrer da estrada longa, onde cruzei, tantas vezes, com andorinhas, gaivotas e outras aves que arribam sabendo que estão no limite do seu tempo para atingirem o Tempo da Multiplicação. O meu amor foi para o Norte perseguindo a Primavera; os outros passarinhos também estão indo – vindo ao Sul, persigo eu o Passado.
Em parcas cinco horas de estrada cheguei eu a essa Barra do Camacho, lugar onde a boca da imensa lagoa que parece o mar deságua naquele, entre imensas dunas que parecem de açúcar branco, e que se movimentaram bastante, desde que aqui estive a última vez, pois andaram se enfiando dentro de algumas casas. Saí da pousada de tardinha, como que farejando a História, e entre tantas ruas e tantas casas fica meio complicado viajar no tempo – mas depois que saí para a imensa praia de dunas e caminhei por ela até o anoitecer, era possível deixar a imaginação voar solta.
Assim neste friozinho de Outono, não estão aqui os turistas, sequer os paraguaios, que como que se adonaram destas terras – é tão impressionante, no verão, descobrir que há uma área paraguaia no Estado de Santa Catarina! É também impressionante ver vazias as dunas que no verão estão repletas de gente que fala um espanhol adoçado pela língua Guarani – hoje tais dunas que se perdem nas brumas da imensidão do Sul estão vazias, desertas, e quando, lá muito longe, despontaram duas minúsculas figuras humanas andando na minha direção, eu como que voei para o passado e senti-me na pele de alguém que aqui viveu um dia, há 2, ou há 4, ou há 6 mil anos antes do presente. Como sou filha do século XXI d.C., pensei: “Pôxa, não serão inimigos? Será seguro encontrá-los?” – e então me dei conta que pensara exatamente o que alguém talvez pensara naquele mesmo lugar numa situação igual milhares de anos antes de mim.
Disse que aqui viera perseguindo o passado – e o quanto é forte o passado aqui! São cerca de meia centena os Sambaquis cadastrados neste hoje pequeno município agrícola onde veraneiam os paraguaios, chamado Jaguaruna – quantos haverá que ainda não foram encontrados? Só em um dos Sambaquis, onde deverei passar os próximos dias, aquele que se chama Jabuticabeira II, estima-se que haja para mais de 43.000 pessoas enterradas. Já estive lá outras vezes, e é como viver os meus melhores sonhos de infância. Como não consegui ser arqueóloga, que era o sonho nº 1, acabei me tornando historiadora, conseqüência natural, e já contei em alguma crônica, mais para o passado, como fico, com certeza, incomodando um monte os arqueólogos, pisando onde não devo, imaginando coisas que não devo, quando se trata de uma ciência que prima pela exatidão.
Então, agora à noitinha, temi pelo encontro com pessoas que eu não sabia quem eram, do mesmo jeito que, decerto, pessoas do passado temeram um dia, milhares de anos atrás. Achei melhor, então, caminhar pelas dunas na direção oposta, lá para onde é a goela da Lagoa produtora de abundante alimento ao longo de milênios, e onde tarrafeavam alguns homens do presente. Como se fosse um ser humano do passado, parecia-me mais seguro estar na proximidade de um grupo. Ah! Estas coisas atávicas nas quais nunca pensamos!
É bem sofrido o caminhar na areia refinada e fofa das dunas – pensei que os humanos que aqui viveram no passado eram mais bem treinados que eu, não usavam incômodos tênis e nem roupas incomodativas. Mas então sentiriam frio, pois este clima de hoje é o mesmo “ótimo climático” de 6.000 anos atrás, aqui no Sul deste meu continente. Como os meus irmãos que dormem seu último sono dentro dos Sambaquis se protegiam, então? Ah! Há tanto a saber, tanto a descobrir! A História e a Arqueologia andam apenas tateando no que deve ter acontecido um dia em torno da Lagoa do Camacho, essa lagoa que parece um mar!
Quase escurecia quando vi a garça, tão branca entre a areia branca e a espuma branca do mar! Atentamente, espiava ela a água das ondas que iam e vinham – até que, num átimo de segundo, ela bicou a água e garantiu a sobrevivência! Trêmulo peixe prateado ficou atravessado no seu fino bico, e calmamente ela o devorou totalmente contra a vontade dele! No céu que iria empretecer em seguida, parecia haver todas as tonalidades possíveis do rosa. Ah! Meu amor, é muito lindo o Outono no Sul do mundo, também! Como queria que você tivesse visto o que vi! Escrevi esta crônica tentando passar para os seus olhos que estão às voltas com as flores da Primavera os encantos que o Outono pode ter nas proximidades de uma lagoa que é quase uma testemunha muda das coisas do passado – pois ao redor dela, como que em páginas de um livro, os arqueólogos podem ler camadas e camadas da nossa História tão antiga! Venha um dia ver as dunas brancas da boca da lagoa comigo, meu Passarinho! Quem sabe aquela garça apareça de novo e encha de novo de magia o fim da tarde para você!

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

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