sábado, 23 de abril de 2011



Páscoa

* Por Emanuel Medeiros Vieira

Em memória dos meus pais


Como observou Mauro Santayana, o Cristianismo é uma ideia que sai dos limites dos dogmas estabelecidos e ultrapassa o limite das igrejas que o adotam.
Ele está enraizado no coração dos homens.
Um dia, um repórter falou ao cineasta Federico Fellini (1920-1993), sobre o seu filme “Satiricon”: “Sua obra é pré-cristã, pagã, mas nela percebe-se a presença do Cristianismo”. E ele respondeu de bate-pronto: “Tenho dois mil anos de Cristianismo.”
Quando digo que ele está “enraizado” no coração humano, não estou afirmando que todos os seres nele acreditam em suas crenças, mas que ele permanece no nosso inconsciente e no nosso imaginário, além de nossas convicções.
A Encarnação em Cristo, para muitos pensadores, é a assunção da grandeza do homem enquanto homem. Ele sobrevive, porque é o sumo da consciência humana, o compromisso da vida consigo mesma.
O jovem Cristo, na interpretação de muitos humanistas, foi um dos muitos judeus daquele tempo que, inquietos com a situação política de seu povo, procuraram uma saída para a liberdade. A Palestina estava sob o domínio do Império Romano e era tempo de Tibério, representado ali por Pilatos.
Os homens têm necessidade de transcendência – somos pós e voltaremos ao pó –, e necessitam de algo que ultrapasse as misérias do cotidiano. Alienação? Não creio. Mas sim, a busca de inserção numa vida mais plena, generosa, menos individualista, que respeite o próximo, e que tenha sede de Justiça.
A Ele se atribui origem divina. “Era necessária a reafirmação da antiga aliança, com a Encarnação, a renovação da promessa mediante um homem de carne e osso, enviado do Absoluto para pregar o amor – ou seja, a solidariedade essencial entre os homens como pressuposto de sua salvação.”
Cristo era um homem, como lembra Santayana, capaz de amar, de se irritar, como no episódio dos mercadores do templo. Segundo o articulista, muitas igrejas tentam reduzir a condição humana de Cristo, ao exaltar a ideia de que Ele é o Unigênito de Deus.
Mas, na visão de alguns teólogos, Ele é tão maior e mais necessário quando se reconhece a sua condição humana. Não, não se está reduzindo a sua condição de Absoluto, mas buscando que se aproxime ainda mais do coração humano. Como alguém salientou, Ele é tanto mais o filho de Deus quanto é irmão e amigo de todos os homens. “O irmão e amigo a que recorremos nos rincões de nossa alma, onde se recolhe o sofrimento, porque n’Ele – que é parte de nós mesmos – podemos confessar as humilhações sofridas, o nosso desespero, nossa desesperança do futuro, e contar com o seu consolo e perdão”. Sim: consolo e perdão.
E em quantas situações da vida, não precisamos de consolo? E em quantas, não pedimos para ser perdoados? “Aquele que não poupou o próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não vos dará também com Ele todas as coisas?” (Rm, 8/32).
Sim, a Igreja cometeu erros desde Constantino. Mas, hoje, quando celebramos a Páscoa (Ressurreição), não preciso falar sobre isso. E como salientou o jornalista citado, neste momento também não quero lembrar que dirigentes de outras confissões religiosas que se dizem cristãs explorem impiedosamente a credulidade pública, arrecadando bilhões e construindo vastos impérios econômicos.
É Páscoa. Repito: é Páscoa. Que o sentimento de Ressurreição permanecesse em nossos corações: era a minha aspiração que eu desejava. (Um anseio que vai do menino ao homem sessentão. E que seguirá comigo). Não tenho ilusões: os tempos são ásperos, de exploração, de matança, do império do tráfico, um mundo no qual o homem vale pelo número do seu cartão de crédito. Quer dizer: vale pelo que tem e não pelo que é.
Tempo de desagregação de um valor maior (a família). Mas poderemos ser maiores que isso. Nós podemos contar com Cristo em qualquer capelinha de estrada, em todos os corações que sofrem.
(Dedico este texto – além de Alfredo e Nenê, meus pais – a todos os amigos, ex-amigos, aos que padecem de enfermidades físicas e mentais, aos que aqui permanecem e àqueles que já partiram: não estão mais onde estamos, mas estarão sempre onde estivermos).

*Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre outros.

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