A conspiração dos ventos
me levou aos céus
* Por Eduardo Murta
Um pedido como aquele pesaria mais que a coleção completa dos compêndios de filosofia. Maximiliano ouviu e ficou assim sem norte por um instante. Vagando. Deixou de mordiscar a ponta do lápis, anotou a página em que estacionara na nova série francesa sobre Platão. E se reservaria ao filho. O que é mesmo que ele queria? Um... um papagaio? Não, não!!! Era doutrinariamente contrário a tirar bichos silvestres de seu mundo próprio. Pedisse outra coisa. E o menino batendo na mesma tecla. Ia dar de ombros, quando Digo se fez entender: não era ave, mas destes em papel de seda e taquara de bambu. E emendara: não valia comprar pronto. Se enfadara dos modelos com estampas de super-heróis. Desejava, em resumo, que nascesse das mãos do pai. Mais que um querer, era uma sentença. Maximiliano escutou os detalhes e ficou alisando o vidro do relógio. Agia desta forma sempre que confrontado com becos sem saída – as aulas iniciais de mandarim, os conselhos do dermatologista para que se habituasse à condição de calvo...
Sem respostas prontas, pensou em como seria confortável estar em casa. Consultaria guias pela internet, dispararia telefonemas para casas especializadas. Estudaria croquis nos mínimos detalhes. Mas não ali. A quilômetros de qualquer estabelecimento que lembrasse tecnologia. Em que modernos eram os balcões em fumo de rolo e lingüiça defumada, do velho Dedé. Os biscoitos em forno de barro, de Sisalpina. Se convertera em refém dos acontecimentos. O filho lustrando a expectativa de jeito comezinho, como quem espera a primavera na esquina. Ruminou, ruminou, ruminou... E vislumbrou um impedimento. Onde é mesmo que conseguiriam papel, cola e linha naquele cafundó? Bambu, é certo, não faltaria. Digo usou os dedos magros e pequeninos para abrir caminho entre os vãos da mochila de escola. Estavam lá, um a um, os ingredientes essenciais ao sonho.
Maximiliano desabou em desassossego. Bateu-lhe a lembrança, úmida ainda, dos 8, 9 anos. Posto diante de sua primeira obra de engenharia: fazer, ele mesmo, um papagaio. Mais que isso: cuidar de produzir um que ganhasse os ares. Pediu à irmã que preparasse a goma doméstica. E se aproveitou do material do irmão, exímio artesão de pipas. Aquilo rendeu-lhe nada além de um reles sureco, destes sem a extensão do rabicho, e a prova de fogo capital: dar-lhe uma razão para existir.
As imagens lhe são frescas, como fosse há pouco. Conferiu os remendos de linhas, a flexão da taquara, e partiu. Adentrou a rua em poucos passos, estimou as distâncias, como via tantos outros meninos fazerem, e se deixou correr, achando que já era velho namorado das correntes de ar. Qual nada. Absoluto fiasco. Uma série de rodopios desengonçados, uma sucessão de mergulhos suicidas contra o chão. A raiva. A frustração. A desistência. Tudo se desintegrando.
Nunca, nunca mais, desde então, pusera as mãos naquele ofício, porque seria ramo para outras pessoas. Não para ele. Inábil à quintessência. Não contava, claro, com o doce e desafiador curso da casualidade. Eram ele e o filho, agora, como diante de uma esfinge. Maximiliano custando a compreender como aquela pergunta sem resposta viera bater a sua porta quase 40 anos mais tarde. E Digo sem crer como um homem, àquela altura da vida, seria incapaz de moldar-lhe um mísero papagaio.
Ficaram se olhando, até que o pai esboçou o primeiro gesto. Se afastou momentaneamente, pôs-se na pele de planadores, e viu se distanciar o universo em que Platão, Sócrates e outros discípulos eram ímpares. Mirou tão-somente o significado olímpico das pequenas coisas. Foi construindo, o filho ajudando à sua maneira, o que não passaria de uma boa intenção, se o assunto era imitar os pássaros. Rogou, e os ventos ajudaram. Naquela tarde de agosto, eram eles, dois meninos na contramão da brisa, as silhuetas se misturando. E o papagaio, tosco, remendado, canhestro, ganhando os céus. Reinando. À sua forma, reinando. Feito fosse um gol salvador no apagar das luzes.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
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