quinta-feira, 21 de abril de 2011







A malhação de Judas

* Por Gustavo do Carmo

Judas teve uma infância difícil. Não por causa da pobreza, pois ele sempre estudou em escola particular, vestiu roupas novas de marca e teve muito carinho. Dos avós. Porque os pais ele perdeu precocemente.

A sua dura vida era por causa do seu físico franzino e, principalmente, do seu nome. Servia de chacota para os colegas em época de semana santa. Os amigos faziam questão de antecipar a Malhação de Judas para a quarta-feira, já que na quinta não havia aula. Cobriam-no de piadas e tapas na cabeça. Terminavam a malhação jogando o coitado na caçamba de lixo. O menino chegava em casa tão sujo e humilhado, que na Páscoa nem tinha prazer de comer os ovos de chocolate que ganhava da avó. Se faltava na quarta para fugir da malhação, apanhava na segunda-feira ou no primeiro dia que aparecesse. Até os professores e secretários deixavam escapar algumas piadinhas. O avô já o transferiu de escola duas vezes, mas não adiantava. Apanhava do mesmo jeito. Malhar Judas era uma tradição.

Judas foi batizado pelo pai. Este amava demais a esposa. Quando ela morreu no parto, por complicações ocorridas na cesariana, Walmir ficou tão arrasado que culpou Deus por ter matado a mulher da sua vida. Era muito religioso. Sentiu-se traído. Por isso, batizou o filho com o nome do homem que traiu Jesus por algumas moedas. Só não acrescentou o Iscariotes para não chamar muita atenção. O primeiro nome já era o suficiente para fazer da vida do pequeno Judas um calvário.

Um ano depois, Walmir descobriu mais duas traições. Sua amada esposa Madalena havia lhe traído, antes de morrer, com o seu melhor amigo Joélson, que era como um irmão. Ficou tão deprimido que se enforcou como Judas. O Iscariotes.

Aos dezessete anos, cansado de tantas humilhações físicas e morais, Judas decidiu entrar em uma academia para ganhar corpo. Seu primeiro dia foi num sábado de Aleluia. Chegou às sete horas da manhã. Fez mil flexões. Dois mil polichinelos. Só para aquecer. O instrutor havia passado apenas cinqüenta de cada. Judas insistiu para fazer cem.

Como tinha se esforçado além da conta, o instrutor passou apenas dez exercícios no aparelho de musculação. Judas fez cem. Levou uma sonora bronca do professor. Judas se justificou confessando todo o seu sofrimento de infância. O professor foi solidário, mas precisava alertar sobre os limites do corpo. Judas compreendeu. Mas continuou fazendo em excesso, escondido do instrutor.

Judas ingressou na faculdade de Educação Física. Ganhou corpo depois de um ano de musculação. Mas não o suficiente para deixar de ser humilhado pelos alunos veteranos da faculdade. Na quarta-feira, antevéspera da sexta-feira santa e último dia de aula, os colegas do campus, mais musculosos do que ele, anteciparam a Malhação de Judas no trote da universidade. Pintaram, jogaram cola, café, ovos e leite e deram alguns socos e pontapés na barriga.

Chegou em casa, como sempre, machucado, sujo e humilhado. Já adulto, só ganhava um ovo de Páscoa dos avós. Mas comia apenas para não desfeitear o carinho que tinha por eles. O chocolate para Judas sempre teve gosto de sangue.

Judas por pouco não abandonou a faculdade. Foi convencido a ficar por um colega recém-entrosado e pelos avós. Mas deixou de ser bonzinho para os outros. Jurou vingança contra os seus agressores.

Malhou mais. E passou a tomar anabolizantes. Seus músculos cresceram brutalmente. Parou quando ficou satisfeito com o resultado. Entrou na escola de boxe. Treinou com vontade. Lembrava dos seus algozes quando batia no saco de pancadas. Arrebentou uns quatro.

Quatro também foram os sparrings arrebentados por Judas. Um teve traumatismo craniano, mesmo com capacete. Felizmente foi leve. Judas foi convidado por um empresário para lutar profissionalmente.

Nocauteou o adversário em sua primeira luta no clube do seu bairro. Em apenas cinco segundos. A segunda luta já foi no Maracanãzinho, como preliminar da luta de defesa do campeão brasileiro. Nocaute técnico em trinta segundos no primeiro assalto. No mesmo ginásio, já valendo o cinturão nacional, o resultado se repetiu em menos tempo: vinte segundos. De quebra, acumulou o título sul-americano. E por falar em quebra, o cearense que o enfrentou levou quinze pontos no supercílio.

Seis meses depois, viajou a Punta Del Este para defender o campeonato continental. Em dez segundos, o argentino que o desafiou deixou o ringue direto para o hospital. Judas voltou para o Brasil como um herói e celebridade.

Aceitou uma proposta de cinco milhões de dólares para disputar o título mundial dos pesos pesados em Las Vegas. Judas ia enfrentar o mito do esporte que lhe deu as suas maiores oportunidades.

Em apenas dois anos, desde que se matriculou na academia para ganhar músculo, cansado de tantas humilhações que sofria no colégio às vésperas do sábado de Aleluia, todos os anos, simplesmente por causa do seu nome, Judas se transformou no maior nome do boxe brasileiro em todos os tempos, mesmo sem ainda conquistar um título mundial, que era questão de tempo.

O tal mito era um cubano, vinte quilos mais pesado do que ele. Uma montanha. Montanha não. Uma cordilheira, que aliás, era o apelido do pugilista. Tinha o rosto tão inchado quanto os músculos do seu corpo. Judas parecia o franzino dos seus tempos de colégio perto dele.

A luta ocorreu num sábado de Aleluia, hora dos Estados Unidos, pois já era madrugada de domingo de Páscoa no Brasil. Acompanhado de belas garotas de maiô da organização, Judas entrou com roupão amarelo brilhoso, com desenhos alusivos à nossa bandeira. Golpeava o ar a qualquer momento. Ao ser anunciado, o nome Judas Santos não foi tão ovacionado como o de Carlos “Cordillera” Miguelez. Este sim foi aplaudido de pé.

Soou o primeiro gongo que anunciava o início da luta. Os adversários ficaram se estudando. Judas percebeu que estudou demais ao levar o primeiro cruzado de direita do oponente. Ainda sentia o gosto enferrujado do sangue latejando em seu protetor dental quando levou o segundo. O terceiro levou no olho. Em quinze segundos levou uma seqüência de golpes ininterruptos que o treinador do brasileiro foi obrigado a jogar a toalha. Judas perdeu a luta, não conquistou o cinturão mundial e ainda viu a sua derrota ser chamada de A Malhação de Judas.

Na semana seguinte, ficou sabendo que foram encontrados traços de anabolizante no exame antidoping. Perdeu todos os cinturões que tinha. E a credibilidade. A imprensa passou a malhá-lo. E já não era mais sábado de Aleluia.


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores

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