quarta-feira, 13 de abril de 2011



Comer é uma grande emoção

* Por Mara Narciso


Você fala que é magro, pois os problemas tiram seu apetite ao colocar em sua garganta um bolo intransponível. Diz ainda que “quem tem baixo-peso é apelidado de Olívia Palito, quando mulher, ou vara-de-virar-tripas quando homem”.

Hoje, você é uma pessoa saudável de baixo peso. O que sobra do metro, na sua altura, está 20, em números absolutos, acima do que você tem de peso. Veja só, você é um homem de 1,74m e pesa 54 quilos. Os seus amigos, com amplo sobrepeso, não gostam da sua aparência, no entanto invejam a sua situação de poder comer tudo. Só que você não sente vontade de comer. Passa fácil pelo horário do almoço sem pensar em comida.

Desde menino, para vencer seu famoso fastio, sua mãe inventava receitas, o chamava para comer, e uma vez chegou a ameaçá-lo com o chinelo. A sua penitência era esvaziar o prato para agradar a mãe, mas não conseguia. Beliscava umas duas colheradas de arroz, mastigava um pedaço pequeno de bife, e só. Sem ninguém ver, dava um jeito de engolir o sumo e cuspir fora a “bucha”.

Sua genitora dizia que sem comida você não cresceria. Por sorte, alguma caloria você ingeriu e sua altura ficou no padrão da família. Vendo as pessoas avançarem feito animais em cima da comida, você não entendia como era possível alguém comer tanto, pois desconhecia o sentido da palavra fome. Qualquer quantidade de alimento era demais para você, que em duas mastigadas já empurrava o prato. Era mal de família, pois outros também tinham esse comportamento enfarado. E quando avó e pai reclamavam, mais vontade você tinha de fugir da comida. Houve quem perguntasse: Comer dói?

Os líquidos eram mais fáceis de ingerir, daí surgiu o seu gosto pela Coca-cola. Afinal, as calorias vazias do açúcar eram o que punham você de pé, mas um copo já atrapalhava o seu almoço. Iogurte, milk-shake e vitaminas de frutas, com pouco esforço você engolia. Mas qualquer discussão o afugentava das panelas. A sua única glutonice, o chocolate, uma bomba calórica que você comia e repetia, não resultava em ganho de peso, porque você só mastigava um bom pedaço de vez em quando, mesmo assim, após insistentes pedidos.

Adulto e muito magro, você decidiu ganhar peso. Foi à academia e logo tentaram empurrar-lhe suplementos alimentares e anabolizantes hormonais. Você iniciou os exercícios, resistiu aos apelos para o aumento rápido da massa muscular, e procurou ajuda médica. Foi estimulado a comer o dobro do que vinha comendo, dividindo em três refeições principais e três menores. Era para comer de pouco em pouco, não vendo aqueles copos e pratos imensos para não dissipar a sua escassa vontade de comer.

A tabela de orientação alimentar marcava um café da manhã com leite, pão e assemelhados, uma vitamina ou iogurte, e também uma fruta. Duas a três horas depois era para tomar outra vitamina ou mingau, e mais uma barra de cereal integral ou pão. No almoço foi sugerida uma montanha de arroz, e caso aguentasse umas seis a oito colheres, mais outra massa (feijão, macarrão), salada e carne. Doce de sobremesa, de preferência sorvete ou chocolate. No meio da tarde, coisas da roça, como canjica, arroz doce ou mingau, e no jantar uma sopa substanciosa, um engrossado de milho, ou pirão. Antes de dormir leite com fruta ou achocolatado, e bolo, biscoito ou pão de queijo. Era para você colocar farinha de mandioca no que fosse de sal, e mel, naquilo que fosse de doce, para aumentar o aporte calórico.

Lindo na teoria, impossível na prática. Como você iria engolir tudo isso, se em tempos recentes não conseguia comer quase nada? Então vem a tentação dos estimulantes do apetite, que são poucos e de ação limitada, e o pior: efeito tardio “cem” anos depois (poderá levar a ganho de peso por efeito remoto?). Mas você não acreditou nisso, pois lhe pareceu fantasioso demais. Arriscou-se nos remédios de abrir o apetite, e com a alternância deles, conseguiu comer mais, e modificou a sua visão de se alimentar: socialização e prazer.

Comemorava cada quilo ganho, e sabia ser preciso mudar para não emagrecer ao primeiro problema. O que era esforço de penitente passou a ser um período de encontro festivo. Alimentar-se bem virou uma ocupação mental frequente, com a ajuda da psicoterapia cognitivo-comportamental. E antes você tinha aversão à comida. Com o esforço ganhou dezoito quilos em um ano, e pesa 72 quilos.

A vantagem social foi considerável. Apenas depois do ganho de peso, as pessoas passaram a notá-lo e a respeitá-lo. Não adianta protestar. Os outros são assim.


* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

4 comentários:

  1. Mara,
    Você, como endocrinologista, deve ter muitas histórias deste naipe pra contar. Continue nos brindando com seus inspiradores textos tirados do consultório. Abraços!

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  2. Conheço o problema, ser magro não é fácil. As pessoas são cobradoras, e o pior é que sou geneticamente magra. Se comer demais engordo no máximo 3 Kg, se ficar chateada, perco 5 kg em duas semanas. Abraços!

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  3. Ótimo texto, vai esclarecer e sanar
    algumas dúvidas.
    Abraços

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  4. O obeso ocupa mais espaço no mundo e na mídia. Quase não se fala nas dificuldades do magro, que, diante de qualquer problema perde o apetite e o peso. E depois, um custo para recuperar. É a outra face da mesma moeda (obesidade de um lado e magreza do outro).
    Obrigada Marcelo, Sayonara e Núbia, por comentar.

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