domingo, 24 de abril de 2011







Projeto*M

* Por Juarez José Viaro



"Falta de atenção*perda de produção". FA*PP, este comando estava gravado na memória de A363 definitivamente. Precisava se concentrar. Toda vez que seus pensamentos divagavam aleatoriamente, o comando voltava para a tela principal e gerava um aviso que acendia e apagava na sua frente. Ou estaria gravado em seus neurônios? Não importava. Esses termos orgânicos, com referência ao seu cérebro não eram recomendáveis. Melhor usar a linguagem M para não se distrair novamente e aquele comando aparecer em sua tela.
Sua produção já estava caindo novamente. Logo receberia mensagem de atenção, que também parecia gravada no seu próprio cérebro. Mais atenção = mais produção. Sua cabeça então doía e A363 não sabia se era bom ou ruim. Doer era ruim, também gravaram em seu cérebro, mas um desvio de raciocínio que conseguia fazer, levava à conclusão de que doer era bom. Por quê? Doer = ruim. Repetia a mensagem. Doer = bom, diziam seus pensamentos divergentes. Doer = ruim, repetia a Máquina. Doer = bom, já corrigia seu cérebro.

Sabia que a mensagem da Máquina traria outra em seqüência. Suspender*produção. E gerava o arquivo: Ingerir*cápsula*333B. Sabia que a 333B resolvia imediatamente sua dor de cabeça, mas insistia em ficar com ela. Doer = bom, repetia seu cérebro e novamente a mensagem contrária da Máquina. Sabia que todos esses comandos ficariam gravados e fariam parte do arquivo que a Máquina gerava como relatório de sua jornada de produção. Não se importava. Ninguém lia mesmo aqueles relatórios. Só a Máquina. Fazia tempo que todos seus superiores haviam sido eliminados da produção. Só restava a Máquina. Mas ele duvidava que a Máquina pensasse.

Injúria suprema essa, suspeitar que a Máquina não fosse capaz de analisar dados, interpretar e opinar. Era esse o objetivo supremo do Projeto M. Produzir a Máquina Final, que eliminaria os humanos da produção, do controle da produção e da finalização. Três fases = três objetivos. Foi o primeiro comando que incutiram em seu cérebro. Tinha medo de que atingissem logo a terceira fase: a exclusão de humanos. Quando a Máquina fosse capaz de pensar, os humanos seriam excluídos da produção. Só restava rezar, lembrou.

Rezar? O que era isso, que estava gravado no seu cérebro orgânico? Às vezes voltavam à sua mente mensagens, trechos, pedaços de frases, que não conseguiram apagar. Rezar, não lembrava mais o significado da palavra. E não adiantaria consultar o Dicionário M. Era linguagem Pré*M, quer dizer, obsoleta, sem uso, acesso*não*permitido*.

Rendeu-se à insistência da Máquina e ingeriu a cápsula *333B. Imediatamente uma sensação de bem-estar percorreu seus neurônios, ou melhor, seus arquivos*operacionais. Mas havia aumentado seu tempo de resistência ao comando de ingerir cápsula e isso era bom. Um exercício de resistência. Aos poucos produziria uma camada de proteção aos comandos, que permitiria sentir a dor por mais tempo, até que pudesse senti-la sempre que quisesse.

A dor. Sabia que só ele sentia a dor. Erro*humano, diria o Dicionário M. Tudo que fosse específico dos humanos e a Máquina não fosse capaz de produzir, gerava arquivo de erro*humano. Era o caminho para a terceira fase, que ele tanto temia: sua exclusão do processo de produção. E depois o envio para a área de reprocessamento humano, chamada em linguagem M de Paraíso*M. Segundo os arquivos do Projeto M, os humanos atingiriam a fase 3, o retorno ao Paraíso, quando a Máquina executaria todas as tarefas humanas, restando aos humanos usufruir apenas. Usufruir era seu medo.

Algo em seus arquivos, um pedaço de memória, se referia a esse estágio inicial dos humanos, onde não havia a produção, só usufruto. E gerava uma sensação de que não era bom. Mas a Máquina não permitia sensações divergentes. Usufruto = bom. Era a sensação que permitia. Por que não haveria de ser bom usufruir apenas, sem produzir? Deixar para a Máquina as tarefas todas da produção e apenas viver usufruindo? Sairia da área de produção, voltaria para a área de usufruto. Nem se lembrava mais como era usufruir. Tanto tempo na produção, esqueceu qual era a sensação de usufruto. Lembrava da sensação de prazer, mas era proibido pensar em prazer, logo receberia mensagem de advertência da Máquina: pensar = bom, prazer = ruim. Continuou pensando. Nem se lembrava qual sensação era prazer. E se insistisse em lembrar, a dor de cabeça voltaria e teria que novamente suspender a produção para ingerir *333B.

Melhor não pensar nisso. A363 voltou a se concentrar no serviço que executava. A Máquina registrava seu tempo de devaneio até a cura de sua dor de cabeça e a volta à produção. Podia receber mensagem de advertência pela demora em ingerir *333B. Teria que se justificar para a Máquina. Mas, afinal, quem iria se importar com isso? A Máquina com certeza apenas registraria mais uma ocorrência para humano nenhum tomar providência. Era assim já há algum tempo. Os procedimentos a cargo dos humanos estavam cada vez mais sendo restringidos e sendo substituídos pelos procedimentos da Máquina. Em breve nada mais seria executado por humanos, apenas por ela, a Máquina. A363 sentiu novamente um calafrio, não imaginava como poderia sobreviver depois desse Dia Final quando deixaria a produção e seria transferido para o Paraíso. Esse era o sonho de todos os humanos, menos dele. Tinha um pressentimento, uma desconfiança de que não seria mais o mesmo e não seria feliz usufruindo seu resto de vida sem produzir para a Máquina.

Um aviso sonoro interrompeu esse pressentimento. Era seu horário de descanso. A363 rapidamente inseriu os comandos para seu lanche. Em segundos retirou um hambúrguer da processadora de alimentos e pôs-se a devorá-lo com vontade. Embora sendo o mesmo lanche que programava todo dia, fazia diariamente um exercício de saboreá-lo com mais avidez, buscando recuperar a sensação de prazer em comer, que há muito tempo não sentia mais. Era tudo tão automático que aos poucos tinha se tornado alheio a essa sensação e esquecido de como era bom morder vagarosamente todos os ingredientes e sentir seu paladar confortado pela ingestão de algo saboroso.

Mais um aviso sonoro, mas desta vez a processadora de alimentos avisava que os ingredientes estavam se esgotando e que necessitava de novos suprimentos. Digitou rapidamente um pedido à Central de Mantimentos para repor os estoques da processadora de alimentos de sua Célula Domiciliar. Era o mesmo pedido de sempre, poderia até mesmo programar para que a processadora repetisse ao infinito seu pedido de mantimentos, mas preferia ter que fazê-lo sempre, para ter a sensação de controlar sua alimentação. Em segundos veio a confirmação do pedido e o débito em sua conta. Por um mês mais não teria que se preocupar com a reposição de ingredientes para sua alimentação.

Saciada sua fome, voltou a seus devaneios sobre o futuro. Procurava não se ater às propagandas incutidas em seu cérebro sobre o Dia Final, quando estaria concluída a Fase 3 e seria enviado ao Paraíso. Afinal gostava de sua vida como estava. Por mais vazia que fosse, gostava de ficar em sua célula domiciliar, mesmo levando uma vida solitária. Mas estava acostumado e toda vez que se sentia só, voltava à produção e evitava sentir-se triste pela falta de convívio humano.

Há tempo não sabia o que era outro ser humano para conversar. Suas conversas ora se restringiam a contatos profissionais, ora conversas virtuais com pessoas de todas as partes do mundo, mas todas monitoradas. Queria poder ficar com alguém sem o monitoramento da Máquina, mas sabia que isso era impossível, ou passível de séria advertência. Com a substituição da Internet pela Omninet, após a última Guerra do Petróleo, não havia mais a possibilidade de uma rede intermáquinas que não fosse monitorada pela Máquina. Tudo era controlado, cada frase, cada interjeição digitada ficava registrada e passível de conhecimento e consulta por todos. A intimidade e as conversas reservadas não eram mais permitidas, para controle de possíveis atos de sabotagem e terrorismo, diziam as regras da Omninet.

Aproximou-se da janela e admirou a paisagem. Do 111º andar podia avistar uma nesga do horizonte longínquo, onde as torres de células domiciliares começavam a ficar mais baixas, e um pouco de verde de vegetação aparecia ao fundo. Olhou para o céu e admirou as nuvens que se formavam. Entre milhares de pontos escuros que representavam os transportadores aéreos podia ver algumas nuvens brancas vagando vagarosamente no espaço azul. Queria poder abrir a janela e inspirar o ar exterior diretamente, mas sabia que era impossível. Todos os procedimentos de selagem de sua célula domiciliar não permitiam que as janelas fossem abertas. Tinha que se contentar apenas com a visão daquela paisagem e sonhar com o dia em que pudesse atravessar todas as torres e poder admirar de perto uma paisagem natural de vegetação terrestre.

Enquanto isso, contentava-se em cuidar das plantas artificiais, as únicas permitidas num ambiente interno. Embora crescessem e dessem flores e até mesmo frutos, não eram plantas naturais que nascem e morrem, como a vegetação nativa ainda existente. Seus vasos de plantas duravam a vida toda, não necessitavam de cuidados contra pragas, ou excesso de água, ou falta. Tudo era regulado automaticamente, para evitar reparos e decepções. E nem mesmo cresciam em demasia. As plantas sensoriavam o ambiente em que estavam e se adaptavam em tamanho e extensão ao espaço disponível para crescer. Bastavam alguns comandos e elas floriam ou davam frutos, tudo programado. Nada natural. Ou seria isso o 'natural' agora? A363 deparou-se com esse pensamento. Qual era a natureza onde ele vivia? A programada pela Máquina, ou aquela distante, que avistava de sua janela? Divagava sobre isso quando o aviso sonoro alertou para que voltasse à produção.

Era noite na cidade de São Paulo e A363 observava de sua janela as milhares de janelas iluminadas de Células Domiciliares. A megacidade expandira-se por todo o vale dos rios Tietê e Pinheiros, passando por cima deles, agora já submersos em galerias fluviais, avançava pelas cidades vizinhas e alcançava já o Vale do Rio Parnaíba, por onde passava o trem-jato interligando a cidade com o Rio de Janeiro. Era essa a paisagem que via de sua janela voltada para Leste. A mata do entorno da cidade já havia desaparecido antes mesmo da Guerra do Petróleo. Restavam apenas poucos trechos de mata em parques da cidade.

A 363 sonhava em um dia morar longe dessa megacidade, mas restavam poucas opções. As cidades de praia estavam decadentes depois da elevação dos oceanos e as que restavam tinham poucos turistas, com medo da radiação cada vez mais intensa após a destruição da camada de ozônio, acelerado pela Guerra. Muitas dessas cidades, como o Rio de Janeiro, precisaram derrubar a cadeia de prédios à beira-mar para conter o avanço das ondas. Outras, como Salvador, tinham virado um arquipélago e era preciso tomar superlanchas para ir de um bairro a outro. As cidades de campo estavam caríssimas, só permitidas a poucos privilegiados que pudessem pagar aluguéis exorbitantes e alto custo de vida. O m2 de natureza que o Projeto M prometia a cada habitante era um sonho ainda distante para se conquistar.

A363 distraía-se com o vaivém dos transportadores aéreos e o cintilar das luzes da cidade. Resolveu sair um pouco, já que não costumava sair durante o dia. Além do trânsito muito congestionado de carros, transportadores aéreos, e outros veículos, tinha ainda que usar seu traje anti-radiação.

Programou seu embarque para o próximo carro movido a supercondutores, desceu pelo elevador e entrou no carro em frente ao prédio de sua célula domiciliar. O veículo, com mais 5 pessoas dirigiu-se até a Avenida Paulista, utilizando a pista central destinada a ele, enquanto carros comuns, de outros combustíveis, entupiam os canteiros laterais da avenida.

Dentro do veículo, sentada a seu lado, uma jovem recebia as noticias diárias do mundo através de seu terminal omninet, enquanto atrás dele mais 4 pessoas, algumas lendo omnilivros em terminais acoplados aos encostos dos bancos e outras apenas miravam o trânsito da avenida. Um dos passageiros tomava um frasco de hidrossodil, provavelmente, Não devia ser água pois essa tinha se transformado em produto de exportação depois da Guerra do Petróleo.

A363 também conectou seu terminal e pôde ler as notícias do dia. As obras de reconstrução da Ilha de Manhattan estavam aceleradas após a derrubada de todos os prédios que restauram depois do bombardeio por ogivas nucleares, durante a Guerra do Petróleo. Os próprios escombros estavam sendo usados para erguer o nível da ilha, comprometido após o avanço do Oceano Atlântico sobre Nova York.

A China comunicava a construção de nova estação colonizadora na Lua, com envio de 100 cientistas de várias nações. O índice das bolsas subia aceleradamente com as novas notícias vindo do país asiático. No Brasil, as negociações para conversão da Amazônia em território internacional estavam avançadas. O governo exigia a troca por mais áreas no Pólo Antártico, para expandir a região brasileira que seria destinada ao Projeto*M.

Só de ler essa notícia, A363 teve um calafrio. Na sua idade, 105 anos, já se via convidado a abandonar suas funções e se aposentar. Desligou o terminal e olhou pela janela blindada, as pessoas todas vestidas com seus casacos anti-radiação, circulando entre vendedores ambulantes, enquanto transportadores aéreos da polícia circulavam perseguindo os infratores do comércio.

Em poucos segundos, o condutor automático sinalizou para A363 sua descida programada para a esquina da Avenida do Ocidente, que ele conhecera como Brigadeiro Luis Antonio.


* Juarez José publicou o Livro de Poemas "Aroma de Amora". Tem um romance inédito com o título de "Viagem ao Interior". Participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Este texto faz parte de um texto de ficção sobre a cidade de São Paulo no ano de 2058.

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