Meninos de rua no Recife
* Por Urariano Mota
As cidades se revelam mais nuas quando amanhecem. Há seis anos, quando eu caminhava às 6 da manhã pelo centro da cidade, pude notá-los. Os seus corpos enchiam a paisagem das ruas e avenidas do Recife. Amontoavam-se, como se, enfileirados, tangidos pela ordem do acaso, estivessem dispostos como cadáveres.
Ninguém precisava chutá-los para ter a certeza de se estavam ou não mortos. Os meninos estavam imóveis, no chão, de bruços, ou com a cara para o sol, de boca aberta. Pareciam com cadáveres porque alguns dormiam sem fechar os olhos: ficavam a olhar vítreo para as marquises dos prédios, ao lado de floristas, íris do olho à meia-lua. Mais lembravam a foto do cadáver de Che Guevara, sem camisa abatido na Bolívia. A diferença é que eram mais novos, e não estavam caídos por causa mais nobre além da urgente necessidade, de comida ou do afeto que o tóxico dá.
As ruas, as avenidas onde jaziam têm nomes poéticos, belos: da Aurora, do Sol, da Boa Vista. Mas essa poesia não lhes colava na pele, ou melhor, neles se colava uma poesia invisível, até porque ninguém mesmo os via. Eles eram à semelhança de ratos pela madrugada, porque com ratos se confundiam ao sair das cavernas e cloacas da cidade, no escuro da noite. Então eles ficavam todos negros, na pele ou na camuflagem dos animais que corriam pelo asfalto da avenida. Ao amanhecer, jaziam como defuntos, misturados a latas e papéis no chão, acumulados ao longo da noite.
Durante o dia, mais tarde, estariam em grupos na primeira refeição, com o tubo de cola à boca, que aspiravam. Então, mesmo em grupos, aos bandos, ninguém os via, ou melhor, às vezes, sim, quando rondavam como símios as bolsas e os relógios dos adultos. Viam-se sem serem vistos, assim como vemos e evitamos no solo um buraco, um obstáculo, ou grandes montes de merda. As pessoas faziam a volta e tratavam de assuntos mais sérios. Todos estavam já acostumados àqueles figurantes, no cenário. Os meninos eram personagens que nem falavam, porque estavam sempre em porre de sonho, delirantes, com a voz trôpega, plenos do sonho que a cola dá. De repente, alguns deles, os mais sóbrios, os que podiam, saltavam para a traseira de um ônibus. Então os meninos se transformavam em morcegos, à beira da morte nos testes que o motorista fazia, ao frear e acelerar e a fazer voltas velozes com os ônibus, para ver se os morcegos se estendiam no chão.
Olhando-os bem, podia-se perceber que despertavam o amor e a compaixão em algumas almas caridosas. Olhando-os às seis da manhã, como quem faz um exame de corpo de delito, podiam-se ver os traços deixados pelo coração da melhor gente cidadã. Os meninos imóveis, a ressonar, tinham roupas de grife, bermudas, camisas com etiquetas. Roupas sujas, cheias de grude, é verdade, mas roupas caras. Ao vê-los assim, no desprezo da cidade, ficávamos a imaginar o impulso que movia o coração da gente que somente lhes queria bem. Ao chamamento de instituições religiosas, “olha o teu irmão”, ao imperativo de que Deus também podia estar naqueles meninos de rua, as boas almas do ramo doavam algo mais chique.
Mas o detalhe que unificava os meninos na tendência da moda era muito estranho. Todos estavam descalços. Todos. Devia haver alguma lei que impedisse os corações caridosos de caírem até os sapatos. Ou será que a gente mais cristã, quando via os meninos, não lhes via os pés? Ou será que achavam, os corações em boa fé, que andar descalço pelas ruas fosse uma festa? Talvez a moral cristã se preocupasse com a nudez das coxas até os ombros. Ou talvez, quem sabe, os meninos recebessem tênis e os atirassem às águas do Capibaribe, que por ser um belo rio gosta de andar calçado. Ou talvez os sapatos fossem um bem supérfluo para os pés dos meninos, assim como os bonés, porque neles não se viam bonés, como é costume nos irmãos caridosos de sua mesma idade. Ou talvez, enfim, os sapatos fossem trocados por cola, de sapateiro, como me garantiu um senhor educado, com nojo: “eles vivem de cola”.
A um dos meninos, certa manhã, perguntei a idade. “Onze anos”, ele me respondeu. E eu, com minhas exatidões burras, de classe média: “Vai fazer ou já fez?”. Silêncio. Eu insisti, crente de que ele não me havia entendido. “Você faz anos em que mês? Quando é o seu aniversário?”. Então ele me ensinou, antes de correr até a esquina:
- Tio, eu não tenho aniversário.
E me deixou mudo, sem mais perguntas.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
* Por Urariano Mota
As cidades se revelam mais nuas quando amanhecem. Há seis anos, quando eu caminhava às 6 da manhã pelo centro da cidade, pude notá-los. Os seus corpos enchiam a paisagem das ruas e avenidas do Recife. Amontoavam-se, como se, enfileirados, tangidos pela ordem do acaso, estivessem dispostos como cadáveres.
Ninguém precisava chutá-los para ter a certeza de se estavam ou não mortos. Os meninos estavam imóveis, no chão, de bruços, ou com a cara para o sol, de boca aberta. Pareciam com cadáveres porque alguns dormiam sem fechar os olhos: ficavam a olhar vítreo para as marquises dos prédios, ao lado de floristas, íris do olho à meia-lua. Mais lembravam a foto do cadáver de Che Guevara, sem camisa abatido na Bolívia. A diferença é que eram mais novos, e não estavam caídos por causa mais nobre além da urgente necessidade, de comida ou do afeto que o tóxico dá.
As ruas, as avenidas onde jaziam têm nomes poéticos, belos: da Aurora, do Sol, da Boa Vista. Mas essa poesia não lhes colava na pele, ou melhor, neles se colava uma poesia invisível, até porque ninguém mesmo os via. Eles eram à semelhança de ratos pela madrugada, porque com ratos se confundiam ao sair das cavernas e cloacas da cidade, no escuro da noite. Então eles ficavam todos negros, na pele ou na camuflagem dos animais que corriam pelo asfalto da avenida. Ao amanhecer, jaziam como defuntos, misturados a latas e papéis no chão, acumulados ao longo da noite.
Durante o dia, mais tarde, estariam em grupos na primeira refeição, com o tubo de cola à boca, que aspiravam. Então, mesmo em grupos, aos bandos, ninguém os via, ou melhor, às vezes, sim, quando rondavam como símios as bolsas e os relógios dos adultos. Viam-se sem serem vistos, assim como vemos e evitamos no solo um buraco, um obstáculo, ou grandes montes de merda. As pessoas faziam a volta e tratavam de assuntos mais sérios. Todos estavam já acostumados àqueles figurantes, no cenário. Os meninos eram personagens que nem falavam, porque estavam sempre em porre de sonho, delirantes, com a voz trôpega, plenos do sonho que a cola dá. De repente, alguns deles, os mais sóbrios, os que podiam, saltavam para a traseira de um ônibus. Então os meninos se transformavam em morcegos, à beira da morte nos testes que o motorista fazia, ao frear e acelerar e a fazer voltas velozes com os ônibus, para ver se os morcegos se estendiam no chão.
Olhando-os bem, podia-se perceber que despertavam o amor e a compaixão em algumas almas caridosas. Olhando-os às seis da manhã, como quem faz um exame de corpo de delito, podiam-se ver os traços deixados pelo coração da melhor gente cidadã. Os meninos imóveis, a ressonar, tinham roupas de grife, bermudas, camisas com etiquetas. Roupas sujas, cheias de grude, é verdade, mas roupas caras. Ao vê-los assim, no desprezo da cidade, ficávamos a imaginar o impulso que movia o coração da gente que somente lhes queria bem. Ao chamamento de instituições religiosas, “olha o teu irmão”, ao imperativo de que Deus também podia estar naqueles meninos de rua, as boas almas do ramo doavam algo mais chique.
Mas o detalhe que unificava os meninos na tendência da moda era muito estranho. Todos estavam descalços. Todos. Devia haver alguma lei que impedisse os corações caridosos de caírem até os sapatos. Ou será que a gente mais cristã, quando via os meninos, não lhes via os pés? Ou será que achavam, os corações em boa fé, que andar descalço pelas ruas fosse uma festa? Talvez a moral cristã se preocupasse com a nudez das coxas até os ombros. Ou talvez, quem sabe, os meninos recebessem tênis e os atirassem às águas do Capibaribe, que por ser um belo rio gosta de andar calçado. Ou talvez os sapatos fossem um bem supérfluo para os pés dos meninos, assim como os bonés, porque neles não se viam bonés, como é costume nos irmãos caridosos de sua mesma idade. Ou talvez, enfim, os sapatos fossem trocados por cola, de sapateiro, como me garantiu um senhor educado, com nojo: “eles vivem de cola”.
A um dos meninos, certa manhã, perguntei a idade. “Onze anos”, ele me respondeu. E eu, com minhas exatidões burras, de classe média: “Vai fazer ou já fez?”. Silêncio. Eu insisti, crente de que ele não me havia entendido. “Você faz anos em que mês? Quando é o seu aniversário?”. Então ele me ensinou, antes de correr até a esquina:
- Tio, eu não tenho aniversário.
E me deixou mudo, sem mais perguntas.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Urariano, veja meu comentário no Vermelho:
ResponderExcluir•Poema denúncia.
Parabéns escritor Urariano!
Lembrete: O poeta José Calvino escreveu uma poesia que também denuncia as injustiças sociais. Segue: "Menino de rua"
Menino de rua/Menino carente/Filho da rua/ Destino ausente// Dorme nas calçadas/O cobertor é o jornal/Dos batentes, faz almofadas/Durante a noite, dorme afinal// Acorda de manhã/ Sem rezas, ainda de madrugada/Vai à procura do amanhã// Amanhã é outro dia/Diz a beata: “Virgem Maria!”
Grato, Dilma, pelo coemntário e pela lembrança do nosso amigo poeta.
ResponderExcluirUm abraço pra José Calvino.
A cena arranca lágrimas e a sua descrição faz jorrar cachoeiras. Será melhor ser aborto ou um morto vivo? A sociedade criou estas formas de vida. O Ministério Público providencia prisão para as mães que abandonam incapazes na lata de lixo. Estimula a doação às instituições de caridade. Casais estão em fila em busca da criança para adoção. Há pouco tempo, quase 90% só aceitariam adotar crianças brancas. Agora a taxa caiu um pouco. Denúncia seguida de atitude é do que precisamos. Parabéns pela brilhante capacidade!
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