quarta-feira, 27 de abril de 2011







A retaguarda desimportante também importa

• Por Mara Narciso

O pré-congresso foi ontem à noite. Agora, às oito horas da manhã o movimento frenético indica que a parte mais importante vai começar. Médicos de todas as partes do Brasil, especialmente de Minas, estão em Ouro Preto para estudar as doenças hormonais genéticas e metabólicas da infância no 9º Congresso Brasileiro de Endocrinologia Pediátrica. Pessoas chegam céleres, procurando entender a geografia local, para pegar crachás e pastas na Secretaria. Eventos deste porte congregam mais de mil pessoas.
O ambiente é grandioso. Os stands dos megalaboratórios farmacêuticos, mesmo com as limitações impostas pela ANVISA, enchem os olhos. Há arranjos de flores, cortinas, luzes, tablados, fotos enormes, spots com luzes multicoloridas, lanchinhos estratégicos e muito mais. As decorações são claras, com poltronas futuristas, medicamentos, livros, e o onipresente aparato tecnológico. Durante as palestras estrangeiras o sistema de tradução simultânea - 95% dos congressistas a dispensam e não utilizam os fones de ouvido -, e o PowerPoint são perfeitos.
Os três auditórios principais podem ter aulas ao mesmo tempo, exigindo a escolha por tema. Os eventos médicos tradicionalmente são ricos, luxuosos, com muitos shows e festas. As aulas vão de 8 as 18 h, com pausas para o “Café com Papo”, o que foi uma inovação, pois saíram de cena os coffee breaks. A hora do almoço dura de 12 as 13h30min no qual o “Encontro com o Professor” tem lanche in box, com sanduíche natural, salada no copo, suco na caixa, salgado de pacote e uma fruta ou chocolate. A aula patrocinada pelo laboratório recebe o pomposo nome de “Simpósio”, e tem abordagem positiva direcionada para um medicamento. Há quem goste. Muitos vão almoçar fora com familiares. É preciso se apressar, pois gente demais precisa comer em pouco tempo.
No primeiro dia, se carrega a bolsa mais a pasta do congresso, e recebe-se muito material científico, como livros e revistas que pesam bastante nos ombros. Outra característica dos salões é a intensidade do ar condicionado, que fica a dez graus centígrados, ou menos, gelando os ossos, mas nem todos reparam. Sendo outono, é prudente levar um agasalho de média potência, senão será preciso sair para se aquecer.
No segundo dia, um rapaz bem vestido, sorridente e roliço, no seu terno preto, indica a entrada principal, ótima para cortar caminho. Na véspera, poucos o enxergaram. O banheiro, mantido por uma moça que ninguém vê, é outro local de grande afluxo de médicas. Após cada lanche, há frequente escovação de dentes, retoques de maquiagem, e gasto de bastante água. Por dever de ofício, essas profissionais têm mania de lavar as mãos. Então, a água acabou. Precisou do socorro de um caminhão pipa. A cidade estava lotada, por ser quase 21 de abril, Dia de Tiradentes, com consumo muito acima do esperado. Antes de a água chegar, a faxineira buscava alternativas, trazendo chusmas de papel, sabão líquido, trabalhando calada, feito uma sombra.
Na hora do outro “Café com Papo”, o pessoal mal tinha acabado de tomar café no hotel, mas não dispensou os comes e bebes: suco, iogurte, café, leite, água, Yakult, bolo, bombom, sorvete, pão de queijo em profusão, quase meia tonelada. Um rapaz alto e tão bonito quanto um superstar prepara café expresso e outros drinks. A turma aproveita para discutir seus casos difíceis de consultório. Pessoas que se conhecem pouco e raramente se veem dão urras, vivas, beijos e abraços apertados, tirando montes de fotos, claro. Há quem desconfie dessa tempestade de afeto, mas a maioria age assim e parece gostar.
Durante as palestras e mesas redondas, há o invisível fotógrafo, mesmo com o constante espocar do seu flash; as moças silenciosas uniformizadas sobre saltinhos, postadas na entrada ou ao lado da platéia, com os microfones sem fio; e ainda aquela outra que acode o palestrante com o microfone. Entre as aulas, olhando de longe a comilança, ouve-se o burburinho. Os laboratórios se esforçam para atrair a atenção dos médicos, oferecendo brindes e sorteios de livros (noutros tempos havia carros, viagens ao exterior, DVDs, filmadoras, televisores, mas a ANVISA proibiu). Garçonetes uniformizadas e invisíveis levam as xícaras usadas e trazem mais utensílios para as mesas com imensos jarros de flores e toalhas douradas até o chão. Formam um batalhão de serviçais, e ninguém se dá conta. Ao lado dos stands, homens de macacões dão cobertura ao funcionamento das luzes, dos sons e apresentações dos vídeos.
Quando a festa termina, em minutos eles desmancham tudo, e colocam as placas nos caminhões. No último dia, enquanto homens grandes, fortes e viris dão conta do desmonte da festa, as moças delicadas, de uniforme preto e toucas, servem o último café aos ex-congressistas, que, puxando suas malas de rodinhas, buscam as vans e se dirigem ao aeroporto. Falar dos seres acessórios, anexos e esquecidos, é demagogia? Claro que sim. Mas experimente tirá-los do ar. Congresso algum acontecerá.

* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

5 comentários:

  1. É o famoso e indispensável staff organizador. Legal esta sua homenagem, Mara, a essa troupe invisível. Abraços.

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  2. Profissionais essenciais.
    Grata homenagem.
    Abraços

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  3. Sou gente estranha e pouco entroso. Fico pelos cantos, vistoriando os bastidores. Falo pouco nos intervalos, então acabo encontrando um assunto algo inusitado para escrever. Obrigada amigos, pelos comentários.

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  4. Não é demagogia, Mara. Você deu a justa visibilidade a quem trabalha nos bastidores. Parabéns e beijos.

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  5. Sim, Evelyne, podemos ver de outra maneira, da sua maneira, que é melhor.

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