Campeche se mobiliza contra a destruição
* Por Elaine Tavares
* Por Elaine Tavares
De repente, desde há dois anos, a praia do Campeche se encheu de gente sarada, adepta do frescobol. Mas não aquele jogo delicioso, que se joga relaxado, brincando. Não! É um frescobol de força, vitrine de bíceps, bundas duras, corpos bronzeados. Gente muito “bem nascida”, criada a Toddy. Nada contra que eles estejam no Campeche, afinal, a praia é pública. Mas, o tal do “point”, chamado de “riozinho” foi uma invenção, destas que se cria a cada verão. A mídia encontrou ali um filão, um lugar privado que se dispunha a ganhar dinheiro dos graúdos da cidade, e decidiu apostar na ideia. Então, de velhas e conhecidas bocas alugadas começaram as loas ao lugar. “Melhor pico do verão”, “espaço de natureza exuberante”, “lugar propício para as crianças”. E assim foi, dia após dia, na RBS TV, e nos demais veículos do mesmo grupo, praticamente monopólico na cidade.
Estava em andamento uma agressiva campanha de ocupação dos espaços do Campeche. Este era um bairro que ainda resistia aos ataques dos grandes empreendimentos, porque ancorado num forte movimento popular e comunitário. Mas as terras do sul estavam sob o olhar guloso de empreiteiras e grandes especuladores. A campanha midiática deu resultados. Os granfinos vieram para o “paraíso”, a praia, e, pouco a pouco começaram a pipocar os empreendimentos de luxo, com toda a sorte de irregularidades e desrespeito ao modo de vida escolhido pela comunidade.
Com a ascensão do moderno espaço do “riozinho”, veio também a guerra contra o tradicional, apontado como velho, ultrapassado, e até ilegal. As “autoridades ambientais” passaram a questionar a presença do Bar do Chico na praia, e usavam como argumento o fato de ele estar em cima das dunas, portanto, “destruindo a natureza”. Mas, enquanto se travava na Justiça a batalha para destruir o bar que era espaço comunitário, patrimônio cultural, as grandes construções começaram a ser erguidas, muitas delas também sobre as dunas, como é o caso da casa do tenista Guga. Só que estas não eram questionadas.
Assim, a comunidade passou a se mobilizar para defender o bar, e muitas manifestações foram feitas. Aconteciam reuniões, encontros, mobilizações. O bairro fervia na tentativa de barrar o absurdo. Afinal, o bar praticamente estava incorporado à natureza desde os anos 80 e era parte da vida das gentes, nas festas populares como o carnaval e nas religiosas, como a Páscoa e o Natal. Pois, o Bar do Chico foi o bode na sala. Enquanto as forças vivas do bairro andavam as voltas com documentos e reuniões, a mídia incensava as belezas do lugar e os empreiteiros erguiam seus condomínios de massa.
Numa triste manhã chuvosa as máquinas derrubaram o Bar do Chico e, aturdida, a comunidade viu que, bem ali, em frente ao bar, estava um condomínio gigante pronto para privatizar as dunas com um “belo” deck, onde antes estava o tradicional espaço comunitário. E mais, por toda a parte surgiam novos outros condomínios, bate-estacas, rebaixamento de lençol freático, ilegalidades. Tudo sob o beneplácito da lei. Ou seja, a questão do bar do Chico não era sua ilegalidade, já que tem dezenas de construções ilegais na praia. Era uma derrubada política, uma rasteira na história da comunidade.
O bairro cresceu vertiginosamente sem que crescesse com ele a estrutura para manter a qualidade da vida, tão típica do lugar. Sem mobilidade, sem rede de esgoto, a vida começou a deteriorar. Pessoas inescrupulosas e sem qualquer compromisso com a natureza passaram a também cometer sua fatia de ilegalidade e, com as obras da Casan para a implantação do esgoto, ligaram seus esgotos a rede pluvial, fazendo com que os dejetos começassem a correr para o mar e para os rios que ainda vivem no Campeche.
Mas todas estas coisas não aconteceram sem luta. Desde os anos 80 que a comunidade se organiza e mantém uma série de movimentos na defesa do seu modo de vida. O lixo, o esgoto, a cultura, o Plano Diretor, em todas as áreas tem gente se mexendo. A Associação dos Moradores do Campeche, com a ação vigilante de seu presidente, Ataíde Silva, tem feito um trabalho gigantesco de levantamento de dados, de fotografia, de fiscalização. Cada denúncia de esgoto sendo lançado na rede pluvial é investigada e canos são lacrados quase que diariamente. Há um batalhão de pessoas atentas, discutindo, propondo, e lutando. Este é um trabalho cotidiano. Há mais de cinco anos, os representantes destas entidades se reúnem, religiosamente, todas as segundas-feiras, no Clube Catalina. Ninguém nunca esmoreceu na batalha pela vida digna, por um lugar preservado e de qualidade.
Este ano, de novo, promovido pelo mesmo jornalista que criou o “point” do riozinho, o lugar foi palco de um show internacional, dentro da lógica dos mega-shows. A comunidade reagiu, como sempre fez quando a vida por ali é ameaçada. Ainda assim coisas “mágicas” aconteceram como, por exemplo, a empresa conseguir licenças ambientais em tempo recorde. Na verdade a magia foi feita pelo vice-prefeito que liberou o show e assumiu todos os riscos. Ou seja, seguindo o padrão de “para os ricos, tudo”, a prefeitura afrontou os movimentos populares e abriu as dunas para a destruição. Tripudiando não fez um, mas dois shows.
O Rio do Noca tem história
Pois agora, como se a comunidade do Campeche fosse formada por um bando de imbecis e incapazes, a mesma criatura midiática inventou de comandar um projeto de “salvamento do riozinho” que, segundo ele, estaria correndo o risco de estar poluído. Um evento, apenas, sem qualquer compromisso com a luta de décadas. Em primeiro lugar, aquele não é um “riozinho” sem identidade. É o Rio do Noca, que tem uma história de ligação visceral com a gente deste lugar como bem define o morador do bairro, Adir Plácido Vigânigo: “... O Rio do Noca como foi denominado pelos moradores nativos do Campeche há quase um século, precisa ser cuidado com muito respeito. Pois nele, muitos pescadores aprenderam a remar nas canoas de remo de voga, muitos aprenderam a nadar (entre elas eu), muitas mulheres lavaram roupa, muitos campistas banharam seus filhos, beberam sua água, muitos agricultores deram de beber a seus animais. Nosso Rio do Noca tem história. Não essa história que estão tentando contar, a da faixa de areia que é atravessada pelo Rio e chega ao Mar. O Rio do Noca na praia do Campeche define o limite da pesca da Tainha entre a rede do Seu Chico (Francisco Daniel) e a rede do seu Aparício e Getúlio (antes rede do seu Deca). Ele sempre serviu de referência de localização para os moradores. Quem conhece nossa História não esquece das frases: "acima ou abaixo do Rio", "na boca do rio", "até o rio, etc..”.
Este depoimento repleto de paixão e conhecimento é decisivo para mostrar que nesta comunidade ninguém vai se arvorar em dono do rio, muito menos o nomeará como querem os empreiteiros, assim, de forma impessoal, como se fosse um adorno, um produto, pronto para ser comprado ou vendido. O rio que corre para o mar ali na praia do Campeche sempre foi defendido e cuidado pelo povo do bairro, pelo menos o povo que realmente se importa com a vida, com a história e que sabe que tudo aquilo que se faz a terra, faz-se ao filho da terra. Não há como separar a natureza do homem.
Janice Tirelli, do Núcleo Distrital do Campeche, acerta no ponto quando diz: “Vale lembrar que quem estragou o Rio do Noca foi quem fez dele o seu instrumento de ganância sem pensar nas consequências. Para o capital imobiliário é importante um movimento de revalorização da área do rio, porque ele carrega todos os negócios sustentados na sua propaganda que podem cair ante a concorrência com a nova imagem de poluição e fedor na praia”.
Contam os surfistas locais que, entre eles, desde há anos chamam o rio do Noca de “riozinho”, mas segundo eles, não tem o caráter depreciativo ou diminutivo. É apenas carinho. Coisa que não se pode dizer dos que promovem o pico na mídia local.
A comunidade está atenta. As pessoas que estão em luta há décadas pela qualidade de vida no Campeche nunca deixaram um dia sequer de denunciar, fiscalizar e propor saídas para o processo de destruição que o progresso capitalista traz. Por isso, essa campanha que figuras estranhas ao bairro querem fazer de “SOS Riozinho” não encontra qualquer sentido. No Campeche não há nenhum “riozinho”. Há cursos de água com nome e sobrenome, ligados a história deste lugar e que são defendidos com unhas e dentes por aqueles que ali vivem e amam. No Campeche trava-se uma feroz batalha contra os que insistem em destruir e transformar o lugar em espaços desumanos e impessoais.
E justamente porque a batalha é renhida que ninguém despreza novos integrantes que queiram fazer luta conjunta, como explica Janice Tirelli: “Os que querem uma boa causa, que se integrem a essa que tem sua raiz na comunidade, que tem o argumento forte de quem conhece o lugar porque é parte de sua historia – não apenas os nativos, mas todos os que apostaram no espaço coletivo aqui no Campeche. Não nos peçam apoio. Ao contrário, entrem com o seu apoio na defesa do Plano Diretor Comunitário que, se aprovado, evitará que o estrago seja maior”.
É isso. Não passarão!
• Jornalista de Florianópolis/SC
Estava em andamento uma agressiva campanha de ocupação dos espaços do Campeche. Este era um bairro que ainda resistia aos ataques dos grandes empreendimentos, porque ancorado num forte movimento popular e comunitário. Mas as terras do sul estavam sob o olhar guloso de empreiteiras e grandes especuladores. A campanha midiática deu resultados. Os granfinos vieram para o “paraíso”, a praia, e, pouco a pouco começaram a pipocar os empreendimentos de luxo, com toda a sorte de irregularidades e desrespeito ao modo de vida escolhido pela comunidade.
Com a ascensão do moderno espaço do “riozinho”, veio também a guerra contra o tradicional, apontado como velho, ultrapassado, e até ilegal. As “autoridades ambientais” passaram a questionar a presença do Bar do Chico na praia, e usavam como argumento o fato de ele estar em cima das dunas, portanto, “destruindo a natureza”. Mas, enquanto se travava na Justiça a batalha para destruir o bar que era espaço comunitário, patrimônio cultural, as grandes construções começaram a ser erguidas, muitas delas também sobre as dunas, como é o caso da casa do tenista Guga. Só que estas não eram questionadas.
Assim, a comunidade passou a se mobilizar para defender o bar, e muitas manifestações foram feitas. Aconteciam reuniões, encontros, mobilizações. O bairro fervia na tentativa de barrar o absurdo. Afinal, o bar praticamente estava incorporado à natureza desde os anos 80 e era parte da vida das gentes, nas festas populares como o carnaval e nas religiosas, como a Páscoa e o Natal. Pois, o Bar do Chico foi o bode na sala. Enquanto as forças vivas do bairro andavam as voltas com documentos e reuniões, a mídia incensava as belezas do lugar e os empreiteiros erguiam seus condomínios de massa.
Numa triste manhã chuvosa as máquinas derrubaram o Bar do Chico e, aturdida, a comunidade viu que, bem ali, em frente ao bar, estava um condomínio gigante pronto para privatizar as dunas com um “belo” deck, onde antes estava o tradicional espaço comunitário. E mais, por toda a parte surgiam novos outros condomínios, bate-estacas, rebaixamento de lençol freático, ilegalidades. Tudo sob o beneplácito da lei. Ou seja, a questão do bar do Chico não era sua ilegalidade, já que tem dezenas de construções ilegais na praia. Era uma derrubada política, uma rasteira na história da comunidade.
O bairro cresceu vertiginosamente sem que crescesse com ele a estrutura para manter a qualidade da vida, tão típica do lugar. Sem mobilidade, sem rede de esgoto, a vida começou a deteriorar. Pessoas inescrupulosas e sem qualquer compromisso com a natureza passaram a também cometer sua fatia de ilegalidade e, com as obras da Casan para a implantação do esgoto, ligaram seus esgotos a rede pluvial, fazendo com que os dejetos começassem a correr para o mar e para os rios que ainda vivem no Campeche.
Mas todas estas coisas não aconteceram sem luta. Desde os anos 80 que a comunidade se organiza e mantém uma série de movimentos na defesa do seu modo de vida. O lixo, o esgoto, a cultura, o Plano Diretor, em todas as áreas tem gente se mexendo. A Associação dos Moradores do Campeche, com a ação vigilante de seu presidente, Ataíde Silva, tem feito um trabalho gigantesco de levantamento de dados, de fotografia, de fiscalização. Cada denúncia de esgoto sendo lançado na rede pluvial é investigada e canos são lacrados quase que diariamente. Há um batalhão de pessoas atentas, discutindo, propondo, e lutando. Este é um trabalho cotidiano. Há mais de cinco anos, os representantes destas entidades se reúnem, religiosamente, todas as segundas-feiras, no Clube Catalina. Ninguém nunca esmoreceu na batalha pela vida digna, por um lugar preservado e de qualidade.
Este ano, de novo, promovido pelo mesmo jornalista que criou o “point” do riozinho, o lugar foi palco de um show internacional, dentro da lógica dos mega-shows. A comunidade reagiu, como sempre fez quando a vida por ali é ameaçada. Ainda assim coisas “mágicas” aconteceram como, por exemplo, a empresa conseguir licenças ambientais em tempo recorde. Na verdade a magia foi feita pelo vice-prefeito que liberou o show e assumiu todos os riscos. Ou seja, seguindo o padrão de “para os ricos, tudo”, a prefeitura afrontou os movimentos populares e abriu as dunas para a destruição. Tripudiando não fez um, mas dois shows.
O Rio do Noca tem história
Pois agora, como se a comunidade do Campeche fosse formada por um bando de imbecis e incapazes, a mesma criatura midiática inventou de comandar um projeto de “salvamento do riozinho” que, segundo ele, estaria correndo o risco de estar poluído. Um evento, apenas, sem qualquer compromisso com a luta de décadas. Em primeiro lugar, aquele não é um “riozinho” sem identidade. É o Rio do Noca, que tem uma história de ligação visceral com a gente deste lugar como bem define o morador do bairro, Adir Plácido Vigânigo: “... O Rio do Noca como foi denominado pelos moradores nativos do Campeche há quase um século, precisa ser cuidado com muito respeito. Pois nele, muitos pescadores aprenderam a remar nas canoas de remo de voga, muitos aprenderam a nadar (entre elas eu), muitas mulheres lavaram roupa, muitos campistas banharam seus filhos, beberam sua água, muitos agricultores deram de beber a seus animais. Nosso Rio do Noca tem história. Não essa história que estão tentando contar, a da faixa de areia que é atravessada pelo Rio e chega ao Mar. O Rio do Noca na praia do Campeche define o limite da pesca da Tainha entre a rede do Seu Chico (Francisco Daniel) e a rede do seu Aparício e Getúlio (antes rede do seu Deca). Ele sempre serviu de referência de localização para os moradores. Quem conhece nossa História não esquece das frases: "acima ou abaixo do Rio", "na boca do rio", "até o rio, etc..”.
Este depoimento repleto de paixão e conhecimento é decisivo para mostrar que nesta comunidade ninguém vai se arvorar em dono do rio, muito menos o nomeará como querem os empreiteiros, assim, de forma impessoal, como se fosse um adorno, um produto, pronto para ser comprado ou vendido. O rio que corre para o mar ali na praia do Campeche sempre foi defendido e cuidado pelo povo do bairro, pelo menos o povo que realmente se importa com a vida, com a história e que sabe que tudo aquilo que se faz a terra, faz-se ao filho da terra. Não há como separar a natureza do homem.
Janice Tirelli, do Núcleo Distrital do Campeche, acerta no ponto quando diz: “Vale lembrar que quem estragou o Rio do Noca foi quem fez dele o seu instrumento de ganância sem pensar nas consequências. Para o capital imobiliário é importante um movimento de revalorização da área do rio, porque ele carrega todos os negócios sustentados na sua propaganda que podem cair ante a concorrência com a nova imagem de poluição e fedor na praia”.
Contam os surfistas locais que, entre eles, desde há anos chamam o rio do Noca de “riozinho”, mas segundo eles, não tem o caráter depreciativo ou diminutivo. É apenas carinho. Coisa que não se pode dizer dos que promovem o pico na mídia local.
A comunidade está atenta. As pessoas que estão em luta há décadas pela qualidade de vida no Campeche nunca deixaram um dia sequer de denunciar, fiscalizar e propor saídas para o processo de destruição que o progresso capitalista traz. Por isso, essa campanha que figuras estranhas ao bairro querem fazer de “SOS Riozinho” não encontra qualquer sentido. No Campeche não há nenhum “riozinho”. Há cursos de água com nome e sobrenome, ligados a história deste lugar e que são defendidos com unhas e dentes por aqueles que ali vivem e amam. No Campeche trava-se uma feroz batalha contra os que insistem em destruir e transformar o lugar em espaços desumanos e impessoais.
E justamente porque a batalha é renhida que ninguém despreza novos integrantes que queiram fazer luta conjunta, como explica Janice Tirelli: “Os que querem uma boa causa, que se integrem a essa que tem sua raiz na comunidade, que tem o argumento forte de quem conhece o lugar porque é parte de sua historia – não apenas os nativos, mas todos os que apostaram no espaço coletivo aqui no Campeche. Não nos peçam apoio. Ao contrário, entrem com o seu apoio na defesa do Plano Diretor Comunitário que, se aprovado, evitará que o estrago seja maior”.
É isso. Não passarão!
• Jornalista de Florianópolis/SC
Nenhum comentário:
Postar um comentário