sábado, 30 de abril de 2011




A vida e o texto

* Por Luiz Carlos Monteiro

Moacyr Scliar antecipou-se a seus possíveis antologistas, críticos e biógrafos com a escrita de um novo livro de título O Texto, Ou: A Vida – Uma Trajetória Literária. De descendência judaica, mas nascido em Porto Alegre, passou boa parte de sua vida no bairro do Bom Fim, ele é, sem dúvida, um dos escritores de maior relevância do Brasil de agora. Sua idade corresponde praticamente à quantidade de livros que publicou, pois ambas se situam na circunvizinhança dos 70. Assim, torna-se bastante difícil contextualizar um autor que guarda uma produção literária dessa dimensão, que se inicia com o malogro de Histórias de um Médico em Formação (1962), manifestação literária imatura das histórias e experiências de um estudante de medicina, até acertar em 1968, no próximo livro, que ele considera deveras sua primeira obra, com os contos de O Carnaval dos Animais. Bem recebido pela crítica, pois trabalhado nos moldes do realismo fantástico aliado a um viés ideológico típico da década de 60, revela o escritor em pleno processo de amadurecimento. Mais à frente, nas próximas décadas, aparecem romances como A Guerra no Bom Fim (1972), sobre a repercussão da Segunda Guerra Mundial no bairro em que o autor foi criado e O Centauro no Jardim (1980), que tem como protagonista um menino metade homem metade cavalo, a mostrar o filho do imigrante judeu repartido culturalmente entre a influência do convívio familiar e a vida externa que, de algum modo, entra em choque com a cultura originária do seu povo.

Em A Majestade do Xingu (1997), Scliar traça o roteiro biográfico do médico e indianista Noel Nutels (1913-1973), que fez seu curso no Recife e depois foi para o Rio de Janeiro. Convocado para fazer parte de uma expedição ao Xingu, Nutels passou a dar assistência médica aos indígenas. Nos seus primeiros contatos, uma prova de fogo se faz urgente, que é curar uma indiazinha que agonizava, ação que tem desfecho surpreendente: “Noel termina de preparar a solução. Num rápido movimento, aplica a injeção no braço da indiazinha. A picada da agulha arranca-a ao torpor: com inesperada fúria, agarra a mão do médico – e a morde com vontade. Os índios riem. Não lhes desagrada ver um branco assustado, mas não é só isso, estão aliviados, felizes. (...) Quando, ao raiar do dia, vê que ela começa a melhorar, sente-se invadido por uma onda de júbilo e alívio. Sai da oca, espreguiça-se, olha ao redor a magnífica paisagem, a floresta, o majestoso Xingu; já é parte daquela paisagem, ele. Aquele é o seu cenário”.

Para quem escreve de um modo “prolífico” feito Scliar, que contabiliza ainda no conjunto da obra livros de ensaios e crônicas, e mais de vinte títulos de ficção infanto-juvenil, deve-se admitir e esperar que um ou outro destes volumes possa vir a decair um pouco na questão da qualidade literária. Pois não há como evitar a saturação formal e temática, sendo quase impossível evitar também a repetição de clichês ou lugares-comuns já existentes em trabalhos anteriores. Seja como for, o seu reconhecimento como autor de primeira categoria é assunto fechado. Nos cinco capítulos deste O Texto, Ou: A Vida, Scliar destrincha a sua atividade literária de décadas em paralelo com a medicina, uma servindo de suporte e influência à outra. Outra vertente de óbvia relevância para a trajetória literária vivida é a sua condição judaica e, em conseqüência, a sua ligação com a Bíblia e muito de suas histórias, parábolas e temas. Em vários textos ensaísticos ou ficcionais, ele aborda a medicina pública brasileira e a imigração judaica com a chegada, a acomodação e a sobrevivência dos judeus no Brasil. Trabalhos a que pouca gente tem acesso são trazidos a lume, inclusive um texto longo como Os Contistas, que retrata, com humor desabrido e ferino, a imensa e exótica fauna de contistas a quem o autor imprime vida e movimento, reunidos num lançamento de livro. Texto que poderia ser aplicado também, guardadas as diferenças de gênero, à imensa quantidade de pretensos ou, mais raramente, autênticos poetas que vagam por aí, bons e maus artistas do verso, vivendo no campo ou na cidade. Este trecho de Os Contistas reflete bem o clima do texto, de gozação, ironia e sátira explícitas: “O contista Morais parou de escrever para cultivar rosas, o contista Ymai para ser terrorista. O contista Murilo não deixou totalmente a literatura: abriu uma escola de escritores por correspondência. ‘Em um mês você estará escrevendo tão bem quanto Guimarães Rosa’, garante, em prospectos. O contista Feijó tinha seus contos sistematicamente recusados para publicação. Deixou os contos de lado, entrou no ramo de cereais e enriqueceu. Lançou, então, o Prêmio Literário Feijó, cujo regulamento estipulava que o conto vencedor passaria à propriedade do Grupo Feijó. De posse desse conto, Feijó rasgava-o, dizendo: ‘Este contista salvei de uma carreira de sofrimento’”.

Há uma passagem neste O Texto, Ou: A Vida de uma sagacidade e bom-humor implacáveis, que indica como o escritor é visto pelo homem comum, neste caso um vizinho, e vice-versa. “O vizinho olhava o escritor que estava sentado, quieto, no jardim, e perguntava: ‘Descansando, senhor escritor?’ Ao que o escritor respondia: ‘Não, amigo, estou trabalhando’. Daí a pouco o vizinho via o escritor mexendo na terra, cuidando das plantas: ‘Trabalhando?’ ‘Não’, respondia o escritor, ‘descansando’.” E Moacyr arremata: “Uma ocupação que não parece trabalho mobiliza arcaicos sentimentos de culpa; afinal, e ao menos no Ocidente, ainda vivemos sob a influência do bíblico ‘ganharás o pão com o suor do teu rosto’”. Este questionamento já tinha aflorado, sob um ângulo bastante diferenciado, num livro anterior a este, Na Noite do Ventre, o Diamante (2005), a partir de uma conversa entre Spinoza e um discípulo seu, resumida adiante. Na Noite do Ventre, o Diamante foi escrito para a coleção “Cinco Dedos de Prosa”, da editora Objetiva, no qual Scliar construiu sua narrativa a partir de uma história sobre o dedo anular. O livro pode ser resumido dizendo-se que um diamante sai em estado bruto no século 17, época da Inquisição, de um arraial em Minas Gerais, passa pelo Rio e São Paulo, chega a países como a Holanda, Alemanha e Rússia, para voltar lapidado ao Brasil num anel da judia Esther Nussembaum. O diamante, ao mesmo tempo em que é valioso e mágico, leva os que o portam a caírem em desgraça. É o caso do menino Gregório, filho de Esther, forçado a engolir o diamante, ainda na Rússia, e que sofre, durante muito tempo, as conseqüências de tê-lo em seu ventre. Quando finalmente o operam, Gregório acorda e sonha com “anulares brotando do chão (...); um bando de anulares, uma coorte de anulares, um exército de anulares, uma multidão de anulares. Todos vindo em sua direção, todos convergindo para ele, todos ansiosos por mergulhar em suas vísceras, todos ansiosos pelo diamante que a noite do ventre – soma de todas as noites – engolira”. O livro exibe situações de aventura e mistério, além de personagens inesquecíveis como o padre Antonio Vieira, o filósofo Spinoza e o revolucionário Leon Trotsky. Num diálogo atribuído a Spinoza e seu discípulo Rafael Fonseca (que lapidou o famoso diamante, depois roubado por Diogo Moreino, um também discípulo de Spinoza), emerge, com muita lucidez, a separação entre o ato de escrever e uma atividade de sobrevivência. Rafael questiona o mestre acerca de sua necessidade de polir lentes e estudar óptica. Ao que Spinoza responde: “Em primeiro lugar, polir lentes é meu ganha-pão – filosofia, como já deves ter percebido, não dá sustento a ninguém. Depois, porque é trabalho manual. É importante usar as mãos, Rafael. Sobretudo no caso de pensadores, como nós. Usamos demais a cabeça, e isto acaba nos atrapalhando, nos distancia da realidade que afinal é uma coisa concreta, visível, audível, palpável, sobretudo palpável.” Aqui, percebe-se claramente como o escritor ou o pensador pode ter a necessidade de usar as mãos em atividades que não as que exigiriam apenas manusear a caneta, a máquina de datilografia (para muita gente, estas duas maneiras já em desuso na escrita de poesia ou prosa) ou o computador.

No último capítulo de O Texto, Ou: A Vida Scliar procura fazer uma retrospectiva do seu trabalho de escritor, desde a infância até os tempos atuais, das possíveis finalidades, objetivos e da própria razão de ser deste livro, de um modo implacavelmente realista: “Sim, a vela que, na infância, arde no bolo de aniversário é a mesma que enfeita o caixão. A vida passa; escrevendo, ou fazendo medicina, ou formando uma família, ou militando politicamente, ou trabalhando, ou bebendo – a vida passa. Chega um momento em que tudo que esperamos das velinhas é que elas iluminem, com sua tênue luz, o nosso passado e nos permitam extrair alguma conclusão de nossas trajetórias”. O começo de O Texto, Ou: A Vida indica que Scliar cresceu ouvindo histórias em casa e na rua, tendo lido também, segundo ele, “histórias de personagens que me emocionaram, me intrigaram, me encantaram, me assustaram – o Saci-Pererê, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, Hércules, Teseu, os Argonautas, Mickey Mouse, Tarzan, os Macabeus, os piratas, Emília, João Felpudo, Huck Finn (...)”. Estes mesmos personagens vão servir, circularmente, de fechamento ao livro: “Todos olham, em silêncio. Do ombro desse senhor, um pouco calvo, que, dizem, é autor de vários livros, mas que nesse momento é apenas o escritorzinho do bairro do Bom Fim contando sua história com a esperança de que as pessoas a acolham com um pouco de simpatia”. Exercício de modéstia e de reconhecimento das influências, familiares ou não, dos personagens e mitos, dos leitores anônimos ou especializados que o animaram e o fizeram prosseguir e contar aqui, com um bom-humor inteligente e necessário, sua “trajetória literária” percorrida até agora.



(Texto original. Publicado com modificações na revista Continente Multicultural, ano VII, nº 80, ago. 2007).

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com


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