terça-feira, 19 de abril de 2011




O primeiro contato, a escravização

* Por Manoel Freitas

Tentaremos organizar uma leitura geral que nos ajude a pintar importantes matizes dessa história e dessa rede de acontecimentos que, ao longo dos anos, foram moldando a comunidade Xakriabá. O primeiro registro oficial de contato entre portugueses e índios da região data de 1553 e 1554, quando o padre jesuíta Aspicuelta Navarro, capitão da Entrada de Francisco de Espinoza, em expedição pelo Norte de Minas, deparou-se com várias tribos ao longo de seu trajeto. Esse contato não produziu informações de grande relevância, além da constatação da presença de indígenas naquela área.


As primeiras notícias específicas sobre os Xakriabá surgiram apenas no final do século XVII, na esteira das estratégias sistemáticas de ocupação e povoamento da região do São Francisco. Em 1674, o bandeirante paulista Fernão Dias já havia incorporado várias faixas do território mineiro. Mas foi seu filho, Matias Cardoso, quem produziu o primeiro relato histórico específico sobre os Xakriabá.


Convocado pelo Governador Geral e Arcebispo do Brasil, D. Manuel da Ressurreição, a combater e eliminar os índios que haviam se refugiado ao longo do São Francisco, Matias Cardoso - em 1690 - doou 80 léguas de terra a 19 companheiros de Bandeiras. No processo de incorporação dessas terras, iniciou-se uma guerra contra várias tribos locais. Nesse mesmo ano, a aldeia de Itapiraçaba (onde se localiza o atual município de Januária) foi destruída, inaugurando a guerra dos Xakriabá com os homens de Matias Cardoso.


O bandeirante e seus homens escravizaram os Xakriabá utilizando-os como mão-de-obra na abertura de fazendas, na fundação do Arraial de Morrinhos e na guerra contra outros índios da região. Há um hiato nos registros e a figura de Matias Cardoso cedeu lugar à aparição de seu filho, o mestre de campo Januário Cardoso, a quem os Xakriabá se aliaram já nos primeiros anos do século XVIII, entre outras razões, por conta da presença ameaçadora dos Caiapó, seus tradicionais inimigos.


Aliados de Januário Cardoso, os Xakriabá teriam ajudado na reconstrução do Arraial de Morrinhos, em 1704, que teria sido remanejado para o atual distrito de Matias Cardoso, município de Manga. Em reconhecimento pelos trabalhos prestados na campanha contra os Caiapó e outros serviços, mas também como forma de delimitar e confinar, aumentando o controle sobre os mesmos, Januário Cardoso “doou” aos Xakriabá, em 1728, uma vasta extensão de terras que equivaleria hoje a todo o território do município de Itacarambi, parte de Manga e São João das Missões.


O Termo de Doação explicitava também rezava que os Xakriabá deveriam ser recolhidos ao aldeamento da Missão de São João (atual município de São João das Missões), refletindo a autoridade colonial imposta aos índios: confinados, seriam mais bem controlados. Para os Xakriabá, o Termo de Doação representava um momento fundante, crucial de sua história e guarda um sentido prático – a posse da terra – e um forte sentido simbólico. A doação, que foi registrada em Ouro Preto em 1856, é o documento que se transformou num aglutinador da comunidade e referência de identidade e reconhecimento.


Entretanto, não há muitos registros do que aconteceu aos Xakriabá entre 1728 e o final do século XVIII. Após a “posse”, e “propriedade” a partir de 1856, de um território definido pela faixa de terra doada em 1728, os Xakriabá assistiram à progressiva expropriação de seu espaço de vida ao longo dos séculos XIX e XX. Com o esgotamento das fronteiras agrícolas no sul e sudeste do país e nas regiões mais centrais e dinâmicas de Minas Gerais, cresceu a cobiça pelas terras dos sertões e dos cerrados intensificando, até o ambiente de confronto armado, as tentativas de expulsá-los de suas terras, apesar da legalidade do Termo de Doação.


Na segunda metade do século XIX, um grupo Xakriabá viajou armado até o Rio de Janeiro para pedir ao Imperador auxílio contra a invasão de suas terras. Como resultado, as autoridades imperiais teriam enviado ao município de Januária um documento oficial exigindo providências.


No final do século XIX e início do XX, um grande número de migrantes nordestinos - sobretudo baianos - fugindo da fome e da seca, penetraram no território Xakriabá. Apesar das fricções iniciais, foram lentamente se integrando ao grupo, através de casamentos e outras associações, dando origem a um pequeno número de posseiros, com variados graus de identificação e de relação com os índios.


Na primeira metade do século XX, houve uma série de conflitos entre Xakriabá e populações não-índias regionais, dos quais o mais marcante teria ocorrido na atual aldeia de Rancharia. Em resposta às invasões dos fazendeiros e grileiros, os Xakriabá atearam fogo num grande curral construído por eles em seu território. Este episódio, conhecido ainda hoje como “incêndio do curral de varas”, gerou uma onda de violência, perseguição e vingança contra os Xakriabá, que durou muitos anos e inaugurou um novo ciclo de atritos, que culminam na proibição da prática do Toré, em 1944, e do uso da língua nativa, em 1950.


Na segunda metade do século XX, a valorização das terras ainda em posse dos Xakriabá intensificou os avanços e pressões da sociedade capitalista envolvente sobre eles. No entanto, foi a possibilidade da inclusão de inúmeras aldeias indígenas num projeto de colonização capitaneado pela Ruralminas, que atraiu fazendeiros e agroempresários a partir de 1969, o catalisador de inúmeros conflitos já latentes.


A atabalhoada intervenção da Ruralminas é também um evento fundante na história do grupo, porque além de avalizar a expropriação das terras indígenas- fornecendo apoio legal, político e policial aos invasores - centrou sua ação no questionamento da identidade étnica e cultural do grupo. Não os reconhecendo como índios, insistiu em tratá-los como meros posseiros, que deveriam ser enquadrados nas novas diretrizes de uso da terra – pagamento de impostos, registro em cartório, prova de permanência, etc.


Ao propor o fracionamento da terra em bases de famílias nucleares, esbarrou em outro ponto central para a comunidade Xakriabá: o uso comum das terras e a posse coletiva do território sempre foram elementos importantes da identidade sociocultural do grupo. Grileiros, fazendeiros e agroempresários usaram de diversos métodos para conseguirem áreas cada vez maiores do território indígena, destacando-se a violência direta e outras formas de coerção, num processo já por demais conhecido.


Com a assistência do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), os Xakriabá iniciaram, em fins da década de 1960, uma série de viagens a Brasília para reivindicar a proteção da Funai. Como resultado dessa movimentação, foi criado o Posto Indígena Xakriabá, em dezembro de 1973. No entanto, a presença do CIMI na área não impediu a continuidade da violência, das ações intimidadoras e do processo geral de titulação de terras conduzido pela Ruralminas.


A Funai, nessa ocasião, não tinha uma visão clara da situação dos Xakriabá e ainda não os reconhecia como índios, adotando uma postura ambígua e recalcitrante: reconhecia o território como indígena, aceitava a presença de remanescentes indígenas, mas seus relatórios ora afastavam a possibilidade de que aqueles que se arvoravam a identidade Xakriabá fossem de fato índios, ora diziam que eram índios já perfeitamente integrados. Apenas em 1979, após um longo processo de reconhecimento da identidade indígena a partir de laudos antropológicos encomendados, a Funai homologou o território Xakriabá, inicialmente em 46.414,92 ha – menos de um terço do território doado em 1728.


A homologação do território aumentou as chances e o repertório de defesa jurídica dos Xakriabá, mas provocou também o aumento da violência daqueles que queriam suas terras. Em 1985, 47% das terras indígenas estavam ainda irregularmente ocupadas. Com a falta de resposta das autoridades, houve uma grande mobilização da comunidade para conter os invasores e resistir aos abusos.


Rosalino Oliveira, importante liderança Xakriabá, organizava, desde 1985, mutirões para derrubar cercamentos e outras construções feitas por invasores dentro da área homologada. Como resposta, foi assassinado em 1987 por um bando armado que invadiu a reserva. A repercussão dos assassinatos e da violência atraiu o governo federal para o centro da ação. Com isso, em 1988, iniciou-se a expulsão dos invasores da área Xakriabá, com ajuda da Polícia Federal e acompanhamento de Procuradores da República.


Apenas em 2003 a área da aldeia de Rancharia foi homologada, somando mais 6.600 hectares à reserva indígena, que passou a contar com 53.014,92 ha. Em outubro de 2004 o município de São João das Missões elegeu o professor Zé Nunes de Oliveira, do PT, como prefeito. Índio Xakriabá, irmão do atual Cacique Domingos e morador da aldeia do Brejo do Mata Fome, Zé Nunes foi eleito após uma campanha desigual, permeada de ameaças e agressões, e transformando-se no primeiro índio eleito prefeito no estado de Minas Gerais.


O território que abriga a maior nação indígena de Mina localiza-se no município de São João das Missões, Norte do estado, no Alto Médio São Francisco, especificamente na microrregião do Vale do Peruaçu. Sua extensão é de aproximadamente 53.014,92 hectares, delimitada pelo Rio Itacarambi, onde existem pequenos cursos de água temporários e alguns permanentes. Há aldeias que fazem limite com Manga, Miravânia, Montalvânia, Januária e Itacarambi.


O clima é quente durante todo o ano, com média anual oscilando entre 24º C e 30º C. A estação chuvosa compreende os meses de outubro a março. Porém, segundo especialistas, nos últimos tempos diminuiu significativamente sua intensidade, a despeito de em 2009 e 2010 o volume de água ter sido acima do índice médio pluviométrico anual, que é de 947 mm, considerado um dos mais baixos de Minas Gerais.


Em toda a sua extensão, o solo é cheio de contrastes. Em diversas áreas em que o território é mais alto, encontram-se os maciços de calcário, brindando a paisagem com um dos mais ricos complexos de cavernas do mundo.


A flora do cerrado Xakriabá é riquíssima e apresenta as mais diversas formas de vegetação, desde campos sem árvores - ou arbustos - até o cerrado lenhoso. Na verdade, uma fração importante da savana mais rica do mundo em biodiversidade, com a presença de diversos ecossistemas, e milhares de espécies de plantas.


Em termos de riqueza de espécies, esta flora deve ser superada apenas pelas florestas amazônicas e pelas florestas atlânticas. As principais árvores são pequi, aroeira, juá, jurema, braúna e pau-d’arque. A maior parte da vegetação é nativa, onde se encontram veredas, a mata seca e caatinga, rica em frutos como a cagaita, cabeça de negro, jabuticaba, maracujá, melão de São Caetano e xixá.


O cerrado em território indígena apresenta grande variedade, abrigando mais de 1.500 espécies animais, exemplo preservado do segundo maior conjunto animal do planeta. A fauna desse bioma é muito rica, destacando-se o grupo dos insetos. Entre os vertebrados de maior porte encontrados na reserva, destaque para a jibóia, cascavel, jararaca, lagarto e teiú. Numa lista interminável, figuram ainda o urubu comum, urubu caçador, papagaios, gaviões, tatu, veado campeiro, cutia, anta, caititu, paca, inhambu, codorna, preá, coelho, raposa, tamanduá, gambá e seriema e diversas espécies de onça.



(Continua)

• Fotógrafo de Montes Claros/MG

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