sábado, 16 de abril de 2011



Suíte beatnik em mi maior


* Por Fernando Mariz Mazagão


É o caralho depender de inspiração! Já é duríssimo não contar com talento. Se essa senhora insistir em me visitar em horas escassas, nas oportunidades mais estapafúrdias, vai ser o caralho, mesmo. É inútil, portanto, desviar-me das trilhas paralelas. Como se eu não soubesse que elas não levam à inspiração, essa velha lasciva e lúgubre. Como se eu não soubesse que são apenas analgésicos para alma. A arte está bêbada. Nós enchemos a cara da putinha e a beleza não resiste a excessos. A inspiração é volátil e inconstante, como Deus. Perde-se no ar se não for apanhada madura. E o pior é que às vezes uma frase bastaria para salvar do vexame de não querer se matar; da vilania de nem querer morrer, a despeito dessa vontade incontrolável de não existir. Pronto, eis a hora das reflexões bastardas, das idiossincrasias de um espírito medíocre que se besunta em verniz para fazer brilhar o muito pouco.

Vaidade, vaidade; vai a idade em vadiagem.

E tudo isso pra não enxergar que vai se ficando cada vez mais barrigudo, careca e classe-média. O espírito indômito pegou um resfriado, meteu-se em baixo das cobertas e lá sucumbiu em Vick Vaporub e preguiça. Em fadiga e covardia. É impressionante como os grandes lances da alma humana só despertam face epopéias e graves crises. Já sua menor parte, não. A baixeza e a pequenez estão sempre prontas, sempre despertas, sempre tinindo.

Acabou-se o expediente ordinário e imediatamente vem-me a vontade de violentar a literatura. Enfiar a mão por baixo do seu vestido e causar-lhe pavor. Tolher toda possibilidade de filhos à maneira espartana. Pois a violência é a alma do negócio: sexo e porrada: sexo é porrada. E quando tudo o mais faltar – exatamente como agora – quando tudo o mais faltar, falarei das benditas placas de sinalização de São Paulo. É muito divertido ver a quantidade de placas dispostas a orientar todos os perdidos que vivem em São Paulo. É uma beleza! É a cidade melhor sinalizada no Brasil. Assim, quem quer seja não perderá uma só de suas monstruosidades e feiúras. E como deixar de falar no Brasil? A simples menção do Brasil já rouba toda as atenções, ávidas de morbidez e desatinos. O Brasil é um circo de aberrações – desses que não temos na nossa cultura, mas que os cronistas menos dotados vão buscar no inverossímil século XIX europeu. Mas eu dizia ser o Brasil um desses circos de horrores, só que suas tendas e jaulas, seus picadeiros e carros alegóricos são verdadeiras obras de arte do esmero divino. Tudo é irracional, invertido e, por isso mesmo, surpreendente. E bem no meio da mixórdia desce diretamente do espaço longínquo da Beleza, Machado de Assis. Irretocável, imprescindível, inesgotável. Tá na cara que o velho Machadão é o verbo feito carne. Só não vê quem está muito ocupado chupando o próprio pau, só esses não enxergam. Esses, os suecos e o resto do Primeiro Mundo idiota que sempre esteve muito ocupado com o exercício de vaidade descrito acima. Tanto pior se eles deixam de ler o maior escritor da história.

É, como não falar no Brasil...

E quando tudo parecia querer findar vejo uma mulher com olhos de siamês puro que não pára de olhar com desejo para um rapaz. Bom, pelo menos eu acho que sim. Não há como ter certeza, afinal. Como alguém cobiça a outrem no passeio público usando meias grossas de lã amarela por baixo de chinelas de couro cru? Vamos e venhamos. Compostura, meninas! Pra piorar tudo o dono do bar em que me encontro é um travesti impressionantemente parecido com uma mulher bonita, uma mulher mais bonita do que o gato siamês que continua olhando, o que torna tudo mais confuso. Mas Deus às vezes sabe o que faz (às vezes, bem às vezes). Era óbvio que o gogó haveria de ter alguma finalidade. É a placa de sinalização de maior importância na cidade violenta do sexo.

Ufa, ainda bem. Companhia! Chegaram os jesuítas de sua estada no claustro da piedade. E eles estão fartos. Sentaram-se em uma das mesas risonhos e escarninhos, embriagados de luxúria antevista na solidão. Estão todos nus, portanto. Bebem cerveja e riem alto de anedotas de português em espanhol. Como missionários podem ter coragem de contar piadas chulas e cruéis em espanhol estando nus em pêlo? Que bom, mais companhia vem sentar-se à mesa deste bar. É o vício da nicotina que primeiro reclama, depois implora, até supurar em vagas de uma fumaça branca que não leva a nada. Beleza, tudo leva a nada mesmo. Só restam duas alternativas ao homem antes dele sumir por completo (a despeito de todos os vestígios que insistimos em evacuar por aí): sonhar ou ter prazer, que é uma forma involuntária de sonhar. Só que o prazer é caro. Custa dinheiro, custa células, custa horas de vida, custa o caralho! Sonhar, não. Sonhar é diferente. Podem te foder por completo, podem te virar do avesso e, até, exterminarem tua vida. Mas antes disso pode-se sempre sonhar. Sonhamos porque pensamos e aí vamos até o nosso limite. Porque os sonhos não são efêmeros como se diz por aí. Os sonhos são orgânicos, são entidades biológicas. Parte fatal de nossa constituição, os sonhos têm apenas dois destinos: ou se realizam ou morrem. Motores da comédia humana – ou divina, sei lá – e dado a sua origem onírica, os sonhos dependem não só de conjunturas concretas, de lutas infatigáveis, de virtudes e vícios, de destreza e destruição. Os sonhos dependem de elementos intangíveis, para não dizer mágicos. Dependem de influências desconhecidas, para não falar em milagre ou sorte. Necessitam de toda uma gama de situações que escapam ao nosso controle. E uma vez transmutados em vida, aquela anterior é totalmente suprimida, morta. O que era sonho torna-se realidade. O sonhador tornado vencedor, o sonhado tornado fato. Durante certo tempo vive-se do sonho, inconsciente de que este agora é vida. Mas a vida não subsiste de si, a vida se nutre de sonhos e, insatisfeita e faminta, urra e chora. Lenta e imperceptivelmente o sonho agora é cotidiano. Cansa, oprime, desgasta. E quando menos se espera já se está sonhando de novo, já estamos necessitados de inspiração. É o caralho, mesmo!


* Músico, dramaturgo, poeta e colaborador de publicações online sobre arte, com crônicas e críticas musicais. Guitarrista e vocalista de bandas de rock'n'roll, tem formação clássica vigorosa, em cursos de regência sinfônica, apreciação musical e instrumentação.

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