sexta-feira, 1 de abril de 2011



No infinito azul, o arco-íris


* Por Rubem Costa


Aquele homem, não foi sem emoção que deixou a clínica na manhã ensolarada. Havia antes chovido e ele trazia na alma a angústia de uma certeza — ia ficar cego. O médico até que tentou amenizar o anúncio, mas desajeitado, não foi capaz de disfarçar o desastre. Não será tão logo assim, disse, tentando esticar-lhe um consolo, como se valesse alguma coisa para o espírito atormentado ter um ou dois meses a mais de expectativa. Sem esperança. De relance desvendou-se o drama. O mundo estava caindo, se esvaindo no apagão anunciado. Lembrou-se de Saramago e irritou-se. Não há diferença entre cegueira branca coletiva e a negra individual do homem, confidenciou amargo para si mesmo. Em cegueira tudo é zero e se resume a prostrar-se diante da existência na carcaça de um ser inútil.

Fervia-lhe o desânimo numa sensação plena de derrota. Sem se despedir, deixou para trás a porta do consultório aberta e com o pensamento voltado para o betume de uma noite sem estrelas, caminhou desorientado até o jardim em frente. Parou em busca de alento entre o suave do verde e o perfume das flores. Inútil. Onde procurava o silêncio encontrou a efervescência em movimento: uma adolescente atrevida, sentada alegremente num banco livre sob a marquise, cantarolava. Enraiveceu. Pareceu-lhe um desprezo acintoso à sua dor. Mas, de qualquer forma, precisava descansar a agitação do espírito. Sem remédio, por ser o único lugar vago na praça, sentou-se junto dela no mesmo banco. Pediria para calar-se. Talvez, sendo educada, respeitasse o seu estresse. A menina, entanto, sabe Deus como, pressentiu-lhe o gorgulho na garganta com vontade de chorar. E invadiu, inocentemente, sua privacidade. O senhor está triste? Furioso, não lhe respondeu. Que tinha de se meter com sua vida?

Pintor, acostumado a manipular cores e combinar luz e sombras na quietude dos devaneios, aquela intromissão? lhe pareceu uma provocativa violação do seu espaço íntimo. Teve a intenção de levantar-se. Mas, intuindo o gesto, a menina pousou-lhe a mão carinhosamente no braço. Não se vá, senhor, gosto de conversar. Fique um minuto e me diga por que está tão aflito. Era demais. Quem lhe disse que estou aflito? Ninguém, mas eu sei, porque sempre acontece aqui no jardim. Sentam para pensar, os que saem desenganados da clínica. Com medo de ficarem cegos, buscam na paisagem um descanso para refletir. Ora pois, despachou abrupto, é assim que você me vê? Não, senhor, não o vejo, apenas pressinto. Sou cega de nascença. O homem desesperançado tremeu. A percepção inconsciente daquela criaturinha frágil penetrava-lhe de repente no íntimo, desnudando a sua covardia diante da vida. Estava a enxergar, sem olhos vivos, a dor que ele sentia pelos olhos que morriam. E tinha piedade dele. Uma onda de aborrecimento misturada com ternura lhe envolveu o ser.

A criaturinha sorriu. Não fique zangado. Gosto de falar e só desejo saber por que as pessoas sofrem tanto quando ainda têm o direito de enxergar. Quero descobrir dentro de outros um pouco de mim mesma que nada posso vislumbrar. Nunca vi, não enxergo, por isso não me canso de perguntar como é a luz do sol. Eu o sinto na pele, afagando-me o rosto, aquecendo o meu corpo, entretanto não entendo essa coisa que, me falam, vem dele — a luz. Para confortar-me, minha mãe gosta de ler poesias sobre o sol e as estrelas. Eu as decoro, porém por mais que imagine não consigo atinar com essa coisa à que chamam de brilho. É uma confusão que me acontece no soneto de Olavo Bilac quando declama: “e ao vir do sol, saudoso em pranto, ainda as procuro pelo céu deserto!” Como posso procurar o que não vejo! Não podia ser, era demais a confissão. Surpreendido, o homem grisalho enterneceu-se: — Caramba, menina, você não enxerga e ainda canta? E ele mesmo, envergonhado, se reviu buscando silencioso o seu drama no verso inquieto de Fernando Pessoa — “O abismo é o muro que tenho”. Indiferente ao que ele pensava, prosseguiu a garotinha: — Também me falam tanto de flores e cores. Das flores eu entendo, já que as seguro nas mãos e sinto o seu perfume. Mas, e as cores? Toda vez que pergunto, me falam de um arco-íris que aparece no alto depois de alguma chuva. Que adianta me dizerem que é um conjunto colorido que aparece no azul do céu? Essa forma geométrica, o arco, eu consigo saber o que é, porque aprendi a traçar com os braços uma volta no espaço. Mas quem é capaz de me mostrar o que é cor, o amarelo, o verde, o vermelho. Já me tentaram traduzir em sinais sonoros, em música como a do Toquinho que canta as cores de abril, o mundo se abrindo em flor. O senhor já ouviu? Já escutou do mesmo Toquinho a Aquarela? De que jeito, me diga, posso desenhar na mente um sol amarelo? As notas que me entram pelo ouvido são belas, mas não me dizem com certeza, por exemplo, como é a cara pintada do palhaço no picadeiro do circo. Imagino, fantasio. Entanto, lhe pergunto, se meus olhos milagrosamente se abrissem de repente, será que enxergaria a mesma coisa que meu espírito vê? A única cor que adivinho com certeza é o preto, a negridão do palco em que vivo. Contudo, me contaram, preto nem é verdadeiramente cor, é a ausência de luz, a noite que tudo apaga e em que nada se pode ver. Do sabiá eu ouço o canto, do papagaio, sei que fala, porém, quando durmo e sonho com dois pássaros voando, batendo asas na escuridão, como posso distinguir entre um e outro? Qual é o sabiá, qual é o papagaio? O senhor pode conservar a memória do domingo na praia com um navio passando ao longe, mas a mim o que sobra? se nem sequer por uma fresta posso espiar!

O sol continuava a brilhar. Tingindo de luz o negro do asfalto. Ao lado da menina (que tanto queria enxergar), o homem grisalho que era pintor — que sabia das formas e do jogo das cores — olhou para o céu e viu de novo o arco-íris a despontar no azul. E, contrito, deu graças a Deus por poder guardar nos olhos a paisagem do mundo e a beleza da vida. A garota sabia o que ele estava pensando e o consolara com a reflexão. Uma menina meiga que nada tinha, mas tudo dava. Emocionado, voltou-se para lhe dizer um adeus agradecido. Não foi possível, o banco estava vazio. A imagem se fora. Descera para o mundo dos sonhos na ante-paisagem das noites sem estrelas.


* Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

Um comentário:

  1. Ser privado da luz, das cores, da
    beleza que enche os olhos...
    Sentir-se limitado em seus sentidos...
    Nada como ouvir aqueles que já lograram
    as adversidades.
    Abraços

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