

Nasce a crônica
* Por Euclides Farias
O discutível conceito renaniano, desses tantos que se aprende na universidade, reza que a gente não deve falar senão daquilo que se ama. Isso talvez explique em parte o renitente amor à crônica, sedução que vem de longa data, que a memória não precisa, apenas especula. Os primeiros ensaios devem ter aparecido lá pelo ginasial. Lia Drummond cronista e, supremo atrevimento, reinventava a estória. Naquele tempo, um romance regionalista, nunca concluído, ganhou o primeiro capítulo.
Muitos anos depois, a crônica bateu à porta de novo. Drummond veio junto. Gênero literário então sob preconceito da crítica, a crônica pontuava debates informais com o poeta paraense Ruy Paranatinga Barata na escadaria do Teatro da Paz, em Belém. Líamos, com insistência publicitária, uma edição portuguesa da Nova Aguillar de Obra Completa do poeta mineiro, que, vivo ainda, estava longe ter todos os livros publicados.
Lá pelo quinto uísque, porém, e do alto de respeitável biografia acadêmica, parlamentar e comunista, Ruy destilava ferocidade – livrando o poeta e o cronista – contra o Drummond político, que, acusava, servira como chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação de Vargas, nos anos 30. Ruy, que morreria como o grande nome da poesia paraense contemporânea, só freava a crítica quando lhe era lembrado que Drummond perdera o emprego em 45 ao defender a escritora Eneida de Moraes, também comunista e paraense.
Drummond demitido já faz parte da história, mas não resisto recontar. Era, a convite de Luís Carlos Prestes, diretor do jornal Tribuna Popular e comandava uma redação com escritores de peso, como Álvaro Moreyra e Dalcídio Jurandir, outra estrela da constelação de intelectuais paraenses, onde também brilham o escritor Inglês de Sousa e o filósofo Benedito Nunes, para ficar em dois caros exemplos, de ontem e de hoje.
A demissão de Drummond foi estrondosa. Eneida, divergindo de Prestes, caiu em desgraça no partido e o diretor de redação desobedeceu à orientação do pecebão para censurar o artigo que ela, como tradutora, assinava no jornal. Teve a sala invadida por uma tropa de choque de correligionários e, franzino, salvou o artigo, abraçando-o contra o peito. “Protegi-o como se fosse o velocino de ouro”, depôs certa vez o poeta sobre o episódio.
Das reminiscências juvenis e das conversas com Ruy em fins dos anos 80 renasceram com vitalidade as crônicas. Algumas, publiquei. Muitas, com fio condutor marcado em velho caderno de anotações, perderam-se na impaciência nossa de cada dia. Outras, como agora, por absoluta falta de assunto melhor, continuam a ser escritas porque, afinal, dizia Drummond, a falta de assunto é sempre um bom tema para se escrever uma crônica.
• Jornalista paraense, com passagens pelo O Liberal, A Província do Pará, Agência Nacional dos Diários Associados e Rádio Cultura. Atuou, como freelancer, na Folha de S. Paulo e Jornal da Tarde.
Na medicina há o agudo, de início súbito e recente, e o crônico, antigo, de duração longa, e algumas vezes de início gradual. As histórias do dia a dia, as coisinhas sem importância levadas ao patamar da universalidade, são geralmente tão datadas que passam de moda, daí o nome "crônicas" que vem de cronos/tempo. Muito bem sabe Pedro Bondaczuk, cujo livro (um deles)tem essa palavra no nome. Não raro, leio crônicas sobre falta de assunto. O que é exagero, pois segundo nosso editor, o problema é o excesso de temas.
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