segunda-feira, 3 de janeiro de 2011




Um brinde à generosidade do barão

* Por Eduardo Murta


Vó Dondinha tem o netinho como um encanto de menino. E descrê do mal traiçoeiro com que costumam pintá-lo em rodas de mexericos. Palitar os dentes com os ossos dos adversários... Hum, mera insinuação de despeito. E aplicá-los, em zeloso trabalho de marchetaria, nas placas das cidades, sustentava que era pura miragem. Inveja dos que, às sombras, se opunham ao barão. E D`Almeida Reis, se fiava, era sincero e generoso nos mimos que lhe fazia ao chá das cinco, ambos namorando as curvas do Rio das Velhas naquela comarca de Sabará. Vistas do castelo, eram um mar de encantamento.
Daria de ombros, então, aos sussurros de que teria baixado norma proibindo sapatos ao populacho. Só a ele, à família real e aos nobres seria permitido desfilar calçados. E as filas ao portão de madeira, em pleno temporal, eram, na verdade, para saudá-lo em pessoa, não para que lustrassem sua coleção de calçados e botas. Injúrias vãs. Duvidaria também do castigo a quem desafiasse as normas. O próprio barão escolhendo os cravos que fixariam a ferradura à sola do condenado. E a sentença de cruzar as ladeiras em pedra como num cortejo.

Tudo imitando tons solenes de procissões – as velas, a matraca, os homens metidos em vestes de guarda romana. Por três noites, com passagens por cochos temperados a sal e limão até os joelhos. Sobrevivendo, se decretava veto no socorro ao renegado. Que perambulasse pelas ruas como lazarento, os cães lambendo suas feridas e os urubus de matadouro à espreita.

E tentasse curar suas chagas longe dali. Porque não permitiria máculas à imagem do lugar. O que pensariam os nobres ao atracarem suas embarcações ao porto Belo? Sendo recebidos em tapetes bordados a ouro e com festas monumentais. As tochas no palácio ardendo por quatro luas, os banhos em leite morno sob a guarda das escravas e as costelas de cabrito adormecidas em conhaque empaladas no fogo de chão. E não se sairia dali sem que provassem dos autênticos charutos sabarenses.

D`Almeida Reis cuidava de garantir que o buquê não decepcionasse nenhum dos convidados. Monitorava todos os processos de produção, órbitas vigilantes. Era capaz de vislumbrar longe uma folha doente e dizer se uma chuva ligeira, naquela semana, faria bem ou mal à plantação. Mais que isso: instituiu minúcias que, contam, conferia com sanha de predador. Montou um time de mulatas esculturais, para que dessem ali, nas coxas e nos seios duros, fôrma irresistível e secreta à charutaria. Cuba, dois séculos mais tarde, copiaria tal particularidade.

E era à mesa, entre baforadas densas e cristais afogando em vinho, que fazia seus melhores negócios. As cargas de sal, as pimentas especiais, ouro, embornais de diamantes. E mulheres, muitas mulheres. Enfileirava a todas, examinava as medidas, alisava os contornos, invadia o calor das saias. Pedia beijos às que tomava como candidatas. Sentisse ardor na base da bexiga, deixava que ficassem. Seguro que seriam amantes servis.

E senhoras de um só desejo – o dele. E ai da que exigisse desgarrar-se. Poderia partir, sim. Como aquela que fora despachada numa caixa, a metade exata do corpo, como o barão ouvira numa história das bandas do Pitangui. Julgava maldade não. Era direito irreparável de posse. Do que ficou, travestiu parte a uma boneca de louça. Unhas, pele seca, cabelos sem vida e aquele olho em morte desidratada. Era um aviso às outras. Elas jurando fidelidade cega. Ele se deliciando ao respeito sacromundano com que lhe serviam. Babasse, beberiam sua baba.

Ainda assim, sabia que tramavam. Redobrou vigilância. Colecionou pesadelos. Deu para ouvir vozes. E viu ali vestígios de maldição naquilo tudo. Precaução, tratou de se proteger. Mandou empetecar a boneca, botar cheiro e fez parar o lugar naquela tarde de junho, o frio chegando bruto. Que acompanhassem todos e, querendo, viessem calçados. Encomendou velório decente ao que sobrara da moça, enterro cristão, broas de fubá, café forte. E a caixa de charutos aos que se habilitassem. Afinal, não haveria de decepcionar Vó Dondinha. E, claro, dia desses aquilo lhe renderia créditos preciosos na fatura de acerto com seus demônios.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

2 comentários:

  1. Personalidade psicótica de dar medo. O fim faz contraponto com a imagem inicial do "netinho", imaginada pela avó.

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