terça-feira, 4 de janeiro de 2011


Ato desmedido

A
s pessoas soem condenar atos desmedidos, incontroláveis e desproporcionais, dado seu exagero. Quando se trata, todavia, de construir algo – uma casa, uma cidade, uma obra de arte ou um poema, não importa – considero digno de louvor e sinto indisfarçável inveja de quem age dessa maneira. E não apenas isso, mas de quem esbanja talento com naturalidade e sem menosprezar ninguém. De quem é altruísta e sacrifica a vida pelo bem-estar e segurança alheios, como agiram, por exemplo, em épocas diferentes, São Francisco de Assis e Madre Teresa de Calcutá (e olhem que nem sou católico!). Gente assim é rara e merece nosso respeito, reconhecimento e gratidão. Tenho como paradigmas, portanto, os que praticam atos desmedidos, mas de competência, de genialidade e de bondade.

Admiro, também, os que vivem desmedidamente (para os padrões comuns), mas não somente o viver por viver, mas sendo úteis e produtivos em idades provectas, centenárias, ou ao redor delas. É o caso, por exemplo, dessa figura veneranda, que é o arquiteto Oscar Niemeyer. Aos 103 anos de idade, recém-completados, segue produtivo e genial, tanto que acaba de completar projeto do memorial (ou do museu, não lembro bem) de outro gênio, que igualmente já conta com idade considerável, que é o maior jogador de futebol de todos os tempos, Pelé.

Claro que por ser escritor, destino minha reverência e admiração mais profundas a quem exerça a mesma atividade que exerço e pela qual tenho tamanha paixão. É o caso do professor, ensaísta, crítico literário e tradutor Bóris Schnaiderman, que aos 93 anos de idade, continua sendo o cérebro lúcido e genial que acompanho há anos nos suplementos literários dos jornais e revistas do país. E por que cito, especificamente, este intelectual? Por uma série de razões, que tentarei resumir.

O primeiro e principal motivo é pela expectativa de seu novo livro, “Tradução: Ato desmedido”, que ele vinha nos prometendo desde 2004 e que, finalmente, já está em mãos da Editora Perspectiva, pronto para ser lançado. Era de se esperar que um espaço voltado à literatura registrasse isso, antes, durante e depois do lançamento. A segunda razão é a figura carismática desse intelectual, que guarda estreita identidade com a minha família (embora não o conheça pessoalmente). Schneiderman nasceu, por exemplo, na Ucrânia, em 1917 (ano da Revolução Bolchevique). Meu saudoso pai nasceu em uma cidade que na época pertencia a esse país e que atualmente pertence à Rússia. Por isso, considerou-se, a vida toda, russo, enquanto vários dos nossos parentes nascidos no mesmo lugar, consideram-se ucranianos. Bóris é, pois, nosso patrício.

Mário de Andrade, no poema “O poeta come amendoim”, escreveu, em determinado trecho: “Brasil amado não porque seja minha pátria,/pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der.../Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,/o gosto dos meus descansos,
o balanço das minhas cantigas, amores e danças./Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,/porque é o meu sentimento pachorrento,/porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir”. Meu pai elegeu, de coração aberto, o Brasil como sua pátria e sempre se orgulhou disso. Schneiderman fez o mesmo.

Todavia, esse notável intelectual, que veio para o nosso país em 1925, aos oito anos de idade, não somente se naturalizou brasileiro em 1941 (meu pai também o fez, mais ou menos na mesma época), mas serviu o exército da sua pátria de adoção, lutando na Segunda Guerra Mundial como soldado da Força Expedicionária Brasileira. A experiência, aliás, inspirou-lhe um romance, intitulado “Guerra em surdina”. Pena que os militares, em vez de lhe darem alguma medalha ou mesmo erigirem-lhe uma estátua, desrespeitaram-no anos depois.

Dadas suas posições coerentes e firmes contra a tortura, dada sua origem eslava e o fato de ter passaporte soviético, Bóris Schnaiderman teve sérios problemas com os militares na época da ditadura implantada no Brasil em 1964. Chegou, até mesmo, a ser preso (posto que em sala de aula). Será que quem o prendeu tinha a mais remota noção da besteira que estava fazendo? Duvido! Hoje, se o sujeito fosse identificado, morreria de vergonha dessa heresia que praticou. Enfim...

Bóris Schnaiderman, ressalto, esbanja lucidez e vigor intelectual, do alto dos seus 93 anos de idade, o que não deixa de ser incomum. Tanto que não se contenta em lançar um único livro. Lançará, logo de cara, dois (como eu fiz com “Lance fatal” e “Cronos e Narciso”). Do primeiro, já falei de passagem. O segundo foi escrito pelo poeta Guenadi Aigui e se intitula “Silêncio e clamor”. Mas se não é o autor, é como se fosse, pois a tradução é sua. E traduzir, convenhamos, é mais complicado do que produzir. Afinal, o tradutor tem que ter desembaraço e pleno conhecimento gramatical não de um, mas de dois idiomas simultaneamente. E olhem que o russo é em tudo diferente do português, a partir do alfabeto, que é cirílico. Além de traduzir o livro em questão, Bóris analisa os poemas nele contidos, contando com a parceria de sua esposa, Jerusa, também crítica literária e tradutora.

O que me dá maior satisfação em contar com este espaço diário é a possibilidade de escrever sobre as pessoas e os livros que gosto. Os senhores não verão por aqui críticas. E não porque eu seja alienado (pelo menos não me considero como tal). A razão é que não faço publicidade do que (e de quem) não gosto. Não destruo ninguém, mas também não dou colher de chá ao que (ou a quem) entendo que seja ruim. Considero que, se criticasse, estaria agindo com uma incoerência inconcebível. De uma forma ou de outra, estaria alardeando o que detesto. Voltando ao início destas reflexões, tenho consciência que meus comentários e reflexões são sempre e sempre e sempre desmedidos. Como desmedida, também (e principalmente) é minha admiração por quem cria e me instrui, como é o caso de Bóris Schneiderman.

Boa leitura.

O Editor.

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3 comentários:

  1. Parabéns pelo maravilhoso editorial, Pedro.
    O grande Bóris Scneiderman é digno de estima, de louvor, por seu valor próprio. Até porque a participação brasileira na segunda guerra mundial, nunca foi reconhecida nas homenagens pós prélio, dos países aliados. Uma total falta de respeito dos que morreram inutilmente pela pátria, em um conflito de interesses econômicos.
    Patriótico abração do,
    José Calvino
    RecifeOlinda

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  2. Que bom que você presta homenagem e faz justiça a esses escritores, Pedro. Belo texto! Parabéns!

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  3. Pedro, eu me sinto absolutamente ignorante diante de suas palavras, mas ao mesmo tempo sinto reduzir a minha mesma burrice, pois sou apresentada a escritores que poderia não ouvir falar, não fosse você. Como vê, até quem não quer ser alienado, acaba sendo.

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