O Capitão América
* Por Urariano Mota
A entrevista a seguir se deu no Bar 28, no Recife Antigo. Em uma mesa a sentir o cheiro de açúcar dos armazéns do cais, estamos eu, o Capitão América e Paulo César Fradique, jornalista e professor de comunicação.
- Capitão, de registro civil você é Paulo Carneiro, bom editor de jornais em São Paulo. Mas como foi que você ganhou o nome de Capitão América entre os recifenses?
- Well. Como todo jovem na década de 70, que não sabia o que fazer na vida, eu parti pra estudar Direito. Na faculdade, entre uma aula e outra, reunia-se um pequeno grupo de estudantes que se punha a declarar o que lera, ou que acabara de ler. Um grupo muito fino, intelectual. Dizia um: “Proust! Que maravilha é ler Proust! De uma assentada só você lê um volume inteiro. Proust é empolgante!”. E eu calado. Aí dizia outro: “Pra mim, o autor é Joyce. Os recursos que ele usa de linguagem, as inversões semânticas...”. E eu só assistindo a tudo, em silêncio. Até que um deles virou-se pra mim, e perguntou: “E você, já leu o quê?”. Aí eu respondi, diante de toda aquela sofisticação: “Eu? Eu só leio o Capitão América”. E passei a narrar a genealogia do herói. Ganhei fama. Eu era o único, em todo o mundo culto da universidade, a conhecer a história, a gênese e os episódios do Capitão América. E por isso os amigos somente me conhecem, até hoje, pelo nome de Capitão América. Ou Capitão, para os mais íntimos.
A essa explicação, Paulo César quer saber as aventuras do super-herói em São Paulo, como foi a luta do Capitão contra o Mal na grande imprensa. Agora percebo. Parece até que estão mancomunados, porque a esse pedido o Capitão América passa a contar os desastres... deste narrador que lhes fala, como se eu não estivesse presente.
- Este rapaz aqui teve a oportunidade de ganhar um freelance pra uma revista feminina, dessas de arte e madame. Era pra cobrir a exposição de um pintor chileno. Tudo ia muito bem até o ponto em que, já no fim da entrevista, ele disse ao pintor: “Você se parece com duas pessoas. Uma é o poeta Pablo Neruda”. O pintor ficou muito feliz. “E a outra?”, perguntou. “Deixa pra lá, olvides”, o meu amigo aqui respondeu. O pintor insistiu: “Por favor, diga. Eu não me ofendo. Isso de parecer é idiotice, é tonteria”. Então o amigo soltou o que lhe estava a coçar na garganta: “A outra pessoa, com que você se parece, é o comediante Costinha”. O pintor ligou para a revista e esqueceu a parte de Pablo Neruda. Pediu a cabeça do repórter. E, é claro, ninguém deixa de atender o pedido de um comediante chileno.
Eu não me lembro bem disso. A melhor explicação que tenho é que nesses relatos o amigo (me refiro ao Capitão América), com em uma sala de espelhos, desenvolve essas histórias com arte e possibilidades. Possibilidades que ele conhece muito serem minhas.
A conversa continua, e ele, senhor de um público enfeitiçado, declama os versos de uma canção de Orlando Dias, imitando em falsete a voz da musa no imortal samba-canção “Perdoa-me pelo bem que eu te quero”. A saber. Na vez da mulher: “perdoar-te, por quê?, se em minhas preces eu agradeço a Deus a ventura imensa de sempre, sempre te haver amado”. Então o meu amigo mais informa, e conta que os cacoetes da interpretação de Orlando, o genioso Orlando Dias, fizeram moda no Brasil. O prolongamento de sílabas nos versos, quando ele cantava, gerou o tipo de cantor-liquidificador, porque a voz imitava as idas e vindas do motor desse eletrodoméstico. Uoooon, uooon, em sobe e desce de volume e extensão. E conclui, em aula magistral, a cantar: “PeeeerdO-oooo-a esse SE-Eer apaai-xo-naado, eeeeEee-sse Se-er deses-PEe-eerado...”.
Em resumo, porque a vida quis assim, este é o Capitão América.
• Escritor e jornalista
* Por Urariano Mota
A entrevista a seguir se deu no Bar 28, no Recife Antigo. Em uma mesa a sentir o cheiro de açúcar dos armazéns do cais, estamos eu, o Capitão América e Paulo César Fradique, jornalista e professor de comunicação.
- Capitão, de registro civil você é Paulo Carneiro, bom editor de jornais em São Paulo. Mas como foi que você ganhou o nome de Capitão América entre os recifenses?
- Well. Como todo jovem na década de 70, que não sabia o que fazer na vida, eu parti pra estudar Direito. Na faculdade, entre uma aula e outra, reunia-se um pequeno grupo de estudantes que se punha a declarar o que lera, ou que acabara de ler. Um grupo muito fino, intelectual. Dizia um: “Proust! Que maravilha é ler Proust! De uma assentada só você lê um volume inteiro. Proust é empolgante!”. E eu calado. Aí dizia outro: “Pra mim, o autor é Joyce. Os recursos que ele usa de linguagem, as inversões semânticas...”. E eu só assistindo a tudo, em silêncio. Até que um deles virou-se pra mim, e perguntou: “E você, já leu o quê?”. Aí eu respondi, diante de toda aquela sofisticação: “Eu? Eu só leio o Capitão América”. E passei a narrar a genealogia do herói. Ganhei fama. Eu era o único, em todo o mundo culto da universidade, a conhecer a história, a gênese e os episódios do Capitão América. E por isso os amigos somente me conhecem, até hoje, pelo nome de Capitão América. Ou Capitão, para os mais íntimos.
A essa explicação, Paulo César quer saber as aventuras do super-herói em São Paulo, como foi a luta do Capitão contra o Mal na grande imprensa. Agora percebo. Parece até que estão mancomunados, porque a esse pedido o Capitão América passa a contar os desastres... deste narrador que lhes fala, como se eu não estivesse presente.
- Este rapaz aqui teve a oportunidade de ganhar um freelance pra uma revista feminina, dessas de arte e madame. Era pra cobrir a exposição de um pintor chileno. Tudo ia muito bem até o ponto em que, já no fim da entrevista, ele disse ao pintor: “Você se parece com duas pessoas. Uma é o poeta Pablo Neruda”. O pintor ficou muito feliz. “E a outra?”, perguntou. “Deixa pra lá, olvides”, o meu amigo aqui respondeu. O pintor insistiu: “Por favor, diga. Eu não me ofendo. Isso de parecer é idiotice, é tonteria”. Então o amigo soltou o que lhe estava a coçar na garganta: “A outra pessoa, com que você se parece, é o comediante Costinha”. O pintor ligou para a revista e esqueceu a parte de Pablo Neruda. Pediu a cabeça do repórter. E, é claro, ninguém deixa de atender o pedido de um comediante chileno.
Eu não me lembro bem disso. A melhor explicação que tenho é que nesses relatos o amigo (me refiro ao Capitão América), com em uma sala de espelhos, desenvolve essas histórias com arte e possibilidades. Possibilidades que ele conhece muito serem minhas.
A conversa continua, e ele, senhor de um público enfeitiçado, declama os versos de uma canção de Orlando Dias, imitando em falsete a voz da musa no imortal samba-canção “Perdoa-me pelo bem que eu te quero”. A saber. Na vez da mulher: “perdoar-te, por quê?, se em minhas preces eu agradeço a Deus a ventura imensa de sempre, sempre te haver amado”. Então o meu amigo mais informa, e conta que os cacoetes da interpretação de Orlando, o genioso Orlando Dias, fizeram moda no Brasil. O prolongamento de sílabas nos versos, quando ele cantava, gerou o tipo de cantor-liquidificador, porque a voz imitava as idas e vindas do motor desse eletrodoméstico. Uoooon, uooon, em sobe e desce de volume e extensão. E conclui, em aula magistral, a cantar: “PeeeerdO-oooo-a esse SE-Eer apaai-xo-naado, eeeeEee-sse Se-er deses-PEe-eerado...”.
Em resumo, porque a vida quis assim, este é o Capitão América.
• Escritor e jornalista
Autenticidade em último grau essa do seu amigo Capitão América. Ele é o que é e não disfarça. Sei, de ouvir falar, que nesta época, no nordeste, foram formados diversos grupos literários, e o quente era discutir os autores estrangeiros chiques, e algumas vezes se discutia filmes cult. Cheguei tarde, e por isso li poucos clássicos. Mas ainda está em tempo, e aos poucos vou lendo.
ResponderExcluir