Elza vai, e sem freios
* Por Eduardo Murta
A razão anda vaga-lumeando em Vó Elza. Pleno fevereiro, é ela, candura, invocando a companhia da filha, a que cuidem dos arranjos da árvore de Natal. Traz duas bolas num rubro de assumido contraste à pele alvinha. A caçula sorri, apenas. E vai desarmando expectativas em cuidadosa comoção. Sugere deixar para amanhã, quando chegam os netos... Sabe que, minutos à frente, tudo se terá apagado.
Como numa quarta-feira, meses antes, em que se pusera negra dos pés à cabeça. Véu encobrindo o rosto, chale abraçando as costas. Rumou à igreja, num dos altos da velha Tiradentes. E, vela acolhida às mãos em comunhão, não havia pároco que a convencesse. Invocava bênçãos à alma de Francisco, cujo corpo vislumbrava ali na capela. Inda que fizesse 20 janeiros de partida do marido, insistia que até pelo terno, que ela mesma lustrara, o reconheceria.
Dois abraços simbólicos de condolência e o conselho a que voltasse para casa, descansasse, eram o bastante. Se recolhia em tardia dor de viúva. E, grave, cuidava de catar o feijão e metê-lo à panela. O marido, queridinha se apressasse, viria para o almoço... Familiares já haviam perdido a conta de quantas explosões provocara. O teto salpicado em manchas. Contavam, rindo, todas em dias de plantão do anjo-da-guarda.
Num instante se desplugava e estava à cadeira de balanço, arqueando num rangente que cortava a tarde. Ia ali namorando os contornos da Serra de São José. E, ao estrondo do panelaço, intuía foguetórios de batizados. Juntava as palmas trêmulas, em prece, a que o recém-chegado à vida fosse acolhido pela sorte. Parentada e vizinhos aportando esbaforidos, saudava o que via como visita-surpresa. Prometia café de coador e broa de fubá.
Logo teriam que ouvir, repetida e detalhadamente, a história da onça que lhe lambera os dedos numa incursão às matas do lugar. Já sabiam como terminava: ela acariciando a cabeça do animal, até que adormecessem ambos. Despertaria, sobressalto, mas sem um rastro sequer à sua frente. Ia contando, e os vincos da face denunciando vagueio pleno. Daí a família ter dado importância vã à frase dirigida aos dois netos: “Amanhã é o dia, se preparem”.
Feição de segredo, Chelo, 9 anos, Nando, 6, tão-somente se miraram. Ninguém notou nas mochilinhas prontas. Na dupla exalando ansiedade. Foram pular da cama, madrugada densa ainda, pé ante pé, até colocarem Vó Elza a postos. Poucos minutos, e eram os três à penumbra da estação. A mais que centenária maria-fumaça em aquecimento, se aproximaram sob cautela. O vapor bafejando às canelas.
Os dedos aos lábios vinham sinalizando silêncio. Tomaram logo a cabine. À ausência meticulosamente calculada do maquinista, foi Chelo quem acionou o trem de partida. Exato como observara nas tantas viagens feitas com o pai. Primeira curva, e o apito cruzaria agudo a câmara de eco da Tiradentes em breu. Festejaram infantis, como a uma conquista de doces piratas. Seguiram com o farol tracejando os canais do Rio das Mortes.
Era claro, quando se estendeu o forro na sala de comando. Tons florais, fragrância de armário. Biscoitos, um café ralinho aos meninos. Vinho de safra especial para Vó Elza. Brindaram. O ar de imediato foi sacudido em fúria sonora. Helicópteros. Uma dúzia deles. Vôos serpenteados. Correram às janelas, acenando. Enxergaram celebração partilhada. E Chelo, mera curiosidade, inquiriu se alguém ali conhecia a alavanca de freio. Se entreolharam, sem resposta. Deram de ombros. Que por eles se abrissem todos os caminhos.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
* Por Eduardo Murta
A razão anda vaga-lumeando em Vó Elza. Pleno fevereiro, é ela, candura, invocando a companhia da filha, a que cuidem dos arranjos da árvore de Natal. Traz duas bolas num rubro de assumido contraste à pele alvinha. A caçula sorri, apenas. E vai desarmando expectativas em cuidadosa comoção. Sugere deixar para amanhã, quando chegam os netos... Sabe que, minutos à frente, tudo se terá apagado.
Como numa quarta-feira, meses antes, em que se pusera negra dos pés à cabeça. Véu encobrindo o rosto, chale abraçando as costas. Rumou à igreja, num dos altos da velha Tiradentes. E, vela acolhida às mãos em comunhão, não havia pároco que a convencesse. Invocava bênçãos à alma de Francisco, cujo corpo vislumbrava ali na capela. Inda que fizesse 20 janeiros de partida do marido, insistia que até pelo terno, que ela mesma lustrara, o reconheceria.
Dois abraços simbólicos de condolência e o conselho a que voltasse para casa, descansasse, eram o bastante. Se recolhia em tardia dor de viúva. E, grave, cuidava de catar o feijão e metê-lo à panela. O marido, queridinha se apressasse, viria para o almoço... Familiares já haviam perdido a conta de quantas explosões provocara. O teto salpicado em manchas. Contavam, rindo, todas em dias de plantão do anjo-da-guarda.
Num instante se desplugava e estava à cadeira de balanço, arqueando num rangente que cortava a tarde. Ia ali namorando os contornos da Serra de São José. E, ao estrondo do panelaço, intuía foguetórios de batizados. Juntava as palmas trêmulas, em prece, a que o recém-chegado à vida fosse acolhido pela sorte. Parentada e vizinhos aportando esbaforidos, saudava o que via como visita-surpresa. Prometia café de coador e broa de fubá.
Logo teriam que ouvir, repetida e detalhadamente, a história da onça que lhe lambera os dedos numa incursão às matas do lugar. Já sabiam como terminava: ela acariciando a cabeça do animal, até que adormecessem ambos. Despertaria, sobressalto, mas sem um rastro sequer à sua frente. Ia contando, e os vincos da face denunciando vagueio pleno. Daí a família ter dado importância vã à frase dirigida aos dois netos: “Amanhã é o dia, se preparem”.
Feição de segredo, Chelo, 9 anos, Nando, 6, tão-somente se miraram. Ninguém notou nas mochilinhas prontas. Na dupla exalando ansiedade. Foram pular da cama, madrugada densa ainda, pé ante pé, até colocarem Vó Elza a postos. Poucos minutos, e eram os três à penumbra da estação. A mais que centenária maria-fumaça em aquecimento, se aproximaram sob cautela. O vapor bafejando às canelas.
Os dedos aos lábios vinham sinalizando silêncio. Tomaram logo a cabine. À ausência meticulosamente calculada do maquinista, foi Chelo quem acionou o trem de partida. Exato como observara nas tantas viagens feitas com o pai. Primeira curva, e o apito cruzaria agudo a câmara de eco da Tiradentes em breu. Festejaram infantis, como a uma conquista de doces piratas. Seguiram com o farol tracejando os canais do Rio das Mortes.
Era claro, quando se estendeu o forro na sala de comando. Tons florais, fragrância de armário. Biscoitos, um café ralinho aos meninos. Vinho de safra especial para Vó Elza. Brindaram. O ar de imediato foi sacudido em fúria sonora. Helicópteros. Uma dúzia deles. Vôos serpenteados. Correram às janelas, acenando. Enxergaram celebração partilhada. E Chelo, mera curiosidade, inquiriu se alguém ali conhecia a alavanca de freio. Se entreolharam, sem resposta. Deram de ombros. Que por eles se abrissem todos os caminhos.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Elza parte em devaneios e delírios
ResponderExcluirvive num mundo onde ainda há graça...
onde ainda vale a pena esperar o dia seguinte.
Belo texto Murta.
Beijos
Fases mais avançadas nos forçam a despedidas precoces, bem antes de a morte chegar. Os vários tipos de demência senil nos desapontam pelo desaparecimento de quem foi tão admirado por nós. Acostumamos com a ideia de que quem está lá não está lá coisa nenhuma, há tempos. Mais adiante, não sofre o doente e nem sofremos nós. A delicadeza das palavras escolhidas por você Eduardo, para debulhar o drama, o torna mais suportável.
ResponderExcluirQue mulher forte em sua ternura. Verdadeira poesia a traquinar com as crianças. Ela apenas mais uma...Parabéns por este texto!
ResponderExcluirAbraços