terça-feira, 2 de novembro de 2010




Cinco mulheres que encontraram suas bonecas

* Por Risomar Fasanaro


A tarde marcada para simplesmente conversar, comer e beber, tornou-se um revival engraçado e...até trágico ao mesmo tempo.
Não sei como começou, mas de repente todas falavam de suas bonecas. Não, não eram meninas, mas a alegria, o entusiasmo com que as cinco amigas adultas falavam, as levava de volta à infância.
A primeira disse que tinha tido várias bonecas, mas a cada uma que chegava, os irmãos Max e Samuel eram tomados por uma súbita vontade de brincar de médico, e partiam para cirurgias de emergência. Abriam o abdômen da paciente que outra não era senão a boneca nova, e de lá retiravam o mistério daquela voz a repetir “ mamãe”.
Depois, Cira retirava a boneca da maca, e desolada, a via morrer em seus braços.
Outras bonecas ela ganhou do pai, mas todas tiveram o mesmo destino.
Mas um dia a menina percebeu que aqueles médicos não deviam ter registro no CRM, e quem sabe a história de Barba Azul os tivesse influenciado mais do que deveria, pois nunca salvavam suas pacientes.
Quando um dia o pai lhe trouxe uma boneca nova, e os irmãos sugeriram brincar de médico, ela foi correndo escondê-la. Só assim a boneca sobreviveu por muito tempo.
A segunda mulher contou sobre a sua. Era de plástico. De um plástico duro, vagabundo que já nem existe mais. E nela nada se mexia. Tudo era imóvel, até o cabelo. Bem, pela sua descrição mais me pareceu uma soldada nazista. De sentinela. Não mexia nada, nem braços, nem pernas, nem cabeça, NADA. Olhos eternamente abertos, duros, pareciam vigiá-la todo tempo, quem sabe pra contar à mãe as peraltices que ela aprontava.
Todas riam ouvindo a descrição, e a encenação que Dina fazia imitando a boneca.
E a terceira contou que também teve a sua. Ela e as duas irmãs ganharam de presente da mãe no Natal, e felizes foram brincar com elas. Mas criança não consegue se prender por muito tempo a nenhum brinquedo, e assim as três esqueceram as bonecas no quintal.
Quando pela manhã Irene e as irmãs voltaram para buscá-las, nada mais havia. À noite chovera, e dissolvera todas três. Os corpinhos de papelão não resistiram à forte chuva que caíra. Nem mesmo chegaram a vê-las desmanchadas, pois a mãe para evitar o sofrimento delas, dera fim aos restos mortais das suas amiguinhas.
A boneca da quarta mulher além de falar mamãe, mexia braços e pernas. Mas isso deve ter incomodado muito seus irmãos, porque primeiro a abriram para saber de onde vinha aquele “mamãe”, cada vez que a menina a tomava no colo. Depois, pouco a pouco foram destripando-a. Um dia um braço, outro dia uma perna, depois a cabeça, até o dia que nenhum membro se articulava mais.
Assim, o que restava da boneca era somente o corpo, sem pernas, sem braços, sem cabeça.
Um dia em que brincavam de casinha, faltava algo para levar ao forno imaginário, e foi aí que se lembraram daquele corpo de pano da boneca, recheado com paina, e que era perfeito para representar um frango assado.
Lídia, a dona da boneca, diz que na hora os irmãos riram muito, mas que lembra ainda a sensação desagradável que foi “comer” aquele frango que na verdade era o corpo da sua boneca.
Bem, a quinta mulher era eu. Tive dois bonecos importantes em minha vida. Um deles foi presente de Natal, e no dia seguinte minha mãe me levou para fazer uma visita. Chegando lá, a filha da amiga de minha mãe, sugeriu darmos um banho nele no tanque de lavar roupas, o que fiz imediatamente, e assim, vi meu filhinho se desmanchar,sob a torneira, deixando em minhas mãos uma gosma grudenta, que logo se misturou com minhas lágrimas, ao esfregar os olhos.
Quando anos mais tarde viajamos para São Paulo, passamos pelo Rio de Janeiro, e ganhei de uma senhora um boneco de louça lindo. Ele era negro, mexia braços e pernas, e chorava. Um boneco raro que minha mãe acreditava ter vindo de algum país europeu. Durante algum tempo brinquei com este boneco, mas um dia meu irmão Rômulo fez dele um alvo e com uma espingarda acertou em cheio o rosto dele e o matou.
Chorei muito por estes dois bonecos, mas meu pranto não os trouxe de volta, assim como minha infância, eles se foram para sempre. Nunca mais tive uma boneca.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

3 comentários:

  1. Nunca tive uma boneca de cabelos, até que num belo dia
    meus padrinhos vieram ao fiofó do Judas onde morávamos
    e ganhei uma linda boneca.
    Era grande, braços e pernas se mexiam, os olhos abriam
    e fechavam e os cabelos eram compridos e loiros.
    Abracei a boneca o dia inteiro e só a larguei na hora de dormir. pela manhã não mais a encontrei...chorei por dois dias até que por fim a encontramos.
    Ela foi assassinada a tesouradas e seus cabelos foram cortados. Apenas eu ganhei a boneca grande, minha irmã mais velha ganhou uma menor, ficou com raiva e se vingou.
    Nem tive tempo de me apegar a ela, voltei pra minhas bruxinhas de milho.
    Beijos Riso.

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  2. Que belo e triste depoimento, Nubia. Acho que esses estragos que os irmãos faziam com nossas bonecas merecem um estudo,se é que não tem, dos psicólogos.
    Obrigada pela história que me conta.
    Beijos

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  3. Belas lembranças que nos trazem ainda outras mais belas, umas alegres, outras nem tanto. Ganhei numa cesta de Natal uma boneca de plástico duro, que não tinha cabelos, apenas uma imitação de plástico mesmo, olhos sem pálpebras, e articulação de braços e pernas, mas a boneca veio com duas pernas direitas, sendo uma delas colocada no lado esquerdo, só que para trás. Foi um trauma para os meus dez anos de idade ter uma filha com esse grave defeito. Chorei muito, e mal dos pecados, a tal cesta veio também com um rato dentro, que comeu parte do conteúdo. AZAR DEMAIS!

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