Apenas mais um dia...
* Por Risomar Fasanaro
“Ai, ardido peito
Quem irá entender o teu segredo
Quem irá pousar em teu destino
E depois morrer do teu amor”
(Elton Medeiros- “Pressentimento”)
Escrevo na penumbra. Preciso desta pouca luminosidade para me trazer de volta o que durante muito tempo procurei esquecer, mas que hoje preciso relembrar. Tudo isso porque fui vê-lo. O leitor não percebe, mas cada palavra deste texto está mergulhada no som da voz de Elton Medeiros que ouço neste instante.
Ele foi um dos compositores que nos acalentaram e nos ajudaram a atravessar aqueles tempos. Não adianta fugir: música e perfume nos trazem de volta pessoas e paisagens, atos e fatos. Foi assim que os anos 70 voltaram pra mim naquela noite.
No palco da Choperia do SESC Pompeia ele surge amparado por um dos músicos, como convidado especial no lançamento do novo disco de Cristina Buarque. Constato emocionada que o sambista envelheceu. Que o compositor que despertava paixões em sete entre dez mulheres que o ouviam, fisicamente já não é o mesmo. Sim, a velhice não escolhe sexo nem classe social. O sambista completou oitenta anos no dia 22 de outubro, e o peso dos anos e da boemia lhe pesam nos ombros.
Cristina que me perdoe, mas o espaço é pouco e preciso falar de Elton Medeiros. Ela, sempre encantadora, simpatia pura, mas foi ele que assaltou o coração.
As lembranças me vêm sem que consiga detê-las. Naquela época, às sextas-feiras, nos barracões da Cidade Universitária mal acabavam as aulas, saíamos em grupo para alguma roda de samba.
Às vezes elas aconteciam no próprio campus, no prédio de Geografia e História, às vezes na Escola de samba Camisa Verde, na Sandália de Prata, ou em outro local qualquer. Paulinho da Viola, Cartola, Martinho da Vila, Ismael Silva eram os sambistas que não só ouvíamos; mas também cantávamos e dançávamos ao som de suas composições.
“Uns com tanto
Outros tantos com algum
Mas a maioria sem nenhum”
Não, a memória me trai, este samba eu não cantei. Ninguém cantou naqueles dias. E só agora ouvi Elton Medeiros contar que a censura não permitiu que sua música chegasse ao povo.
“Nada consigo fazer
Quando a saudade aperta
Foge-me a inspiração
Sinto a alma deserta”
Uma ocasião eu assistia à última aula, quando dois policiais chegara à porta da sala de aula me procurando. O professor se dirigiu a mim, e eu saí. No corredor eles me perguntaram quem eram as duas moças que estavam dentro de um corcel vermelho, e que disseram estar me esperando. Expliquei que eram minhas primas de Natal, RN, que me esperavam porque após as aulas, iríamos a uma roda de samba. Eles só queriam confirmar. Voltei à sala e continuei assistindo a aula. Ninguém me perguntou nada.
Sim, era deste jeito que nos comportávamos naquela época. A voz presa na garganta não comentava o sumiço de algum professor, a prisão do amigo, o assassinato de um conhecido, nada.
Mas se soltava para cantar e dançar. E aquela sexta-feira estava mais pesada que os outros dias. Terminada a aula fomos para a roda de samba. Minhas primas, assustadíssimas, mas eu já estava acostumada com as inspeções diárias no meu carro, a caminho da faculdade, e tranqüilizei-as.
A gente se acostuma até com o que é ruim, e aquela ausência de medo era um jeito que aprendemos de conviver com a ditadura. Não podíamos nos refugiar em casa. A melhor forma de enfrentar o inimigo é mostrando a cara. É o que dizem os oprimidos, e os discriminados, e eu concordo.
Chegando ao sambão nos esquecemos daquele incidente e nos integramos aos que dançavam. No meio da festa o som parou de repente, antes de o samba acabar. E demorou alguns segundos para que nos déssemos conta da presença de soldados do exército com metralhadoras procurando alguém.
As portas se fecharam e eles ordenaram que todos se encostassem à parede com as mãos na cabeça. Uma de minhas primas começou a chorar e a tremer, apavorada, e tirou as mãos da cabeça. Imediatamente um dos soldados gritou com ela e mandou-a parar de chorar.
Logo depois, eles pegaram um rapaz e o levaram. O silêncio tomou conta de tudo e voltamos para casa..
“Ai, mas quem virá
Me pergunto a toda hora
E a resposta é o silêncio
Que atravessa a madrugada”
Aquele era apenas mais um dia vivido naqueles tempos de chumbo. Tempos que, quem não viveu não entende porque nos dói tanto, porque não conseguimos esquecer.
Ah...Elton Medeiros a que viagem você me levou...
Sua voz continua no aparelho de som. Vai tocar o dia todo. Quero impregnar minha alma com seu canto. Só agora percebo como suas letras têm a ver com minha vida. Obrigada, mestre, por me trazer de volta não apenas o que foi ruim, mas um pouco da felicidade que consegui arrancar da vida naqueles dias.
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
* Por Risomar Fasanaro
“Ai, ardido peito
Quem irá entender o teu segredo
Quem irá pousar em teu destino
E depois morrer do teu amor”
(Elton Medeiros- “Pressentimento”)
Escrevo na penumbra. Preciso desta pouca luminosidade para me trazer de volta o que durante muito tempo procurei esquecer, mas que hoje preciso relembrar. Tudo isso porque fui vê-lo. O leitor não percebe, mas cada palavra deste texto está mergulhada no som da voz de Elton Medeiros que ouço neste instante.
Ele foi um dos compositores que nos acalentaram e nos ajudaram a atravessar aqueles tempos. Não adianta fugir: música e perfume nos trazem de volta pessoas e paisagens, atos e fatos. Foi assim que os anos 70 voltaram pra mim naquela noite.
No palco da Choperia do SESC Pompeia ele surge amparado por um dos músicos, como convidado especial no lançamento do novo disco de Cristina Buarque. Constato emocionada que o sambista envelheceu. Que o compositor que despertava paixões em sete entre dez mulheres que o ouviam, fisicamente já não é o mesmo. Sim, a velhice não escolhe sexo nem classe social. O sambista completou oitenta anos no dia 22 de outubro, e o peso dos anos e da boemia lhe pesam nos ombros.
Cristina que me perdoe, mas o espaço é pouco e preciso falar de Elton Medeiros. Ela, sempre encantadora, simpatia pura, mas foi ele que assaltou o coração.
As lembranças me vêm sem que consiga detê-las. Naquela época, às sextas-feiras, nos barracões da Cidade Universitária mal acabavam as aulas, saíamos em grupo para alguma roda de samba.
Às vezes elas aconteciam no próprio campus, no prédio de Geografia e História, às vezes na Escola de samba Camisa Verde, na Sandália de Prata, ou em outro local qualquer. Paulinho da Viola, Cartola, Martinho da Vila, Ismael Silva eram os sambistas que não só ouvíamos; mas também cantávamos e dançávamos ao som de suas composições.
“Uns com tanto
Outros tantos com algum
Mas a maioria sem nenhum”
Não, a memória me trai, este samba eu não cantei. Ninguém cantou naqueles dias. E só agora ouvi Elton Medeiros contar que a censura não permitiu que sua música chegasse ao povo.
“Nada consigo fazer
Quando a saudade aperta
Foge-me a inspiração
Sinto a alma deserta”
Uma ocasião eu assistia à última aula, quando dois policiais chegara à porta da sala de aula me procurando. O professor se dirigiu a mim, e eu saí. No corredor eles me perguntaram quem eram as duas moças que estavam dentro de um corcel vermelho, e que disseram estar me esperando. Expliquei que eram minhas primas de Natal, RN, que me esperavam porque após as aulas, iríamos a uma roda de samba. Eles só queriam confirmar. Voltei à sala e continuei assistindo a aula. Ninguém me perguntou nada.
Sim, era deste jeito que nos comportávamos naquela época. A voz presa na garganta não comentava o sumiço de algum professor, a prisão do amigo, o assassinato de um conhecido, nada.
Mas se soltava para cantar e dançar. E aquela sexta-feira estava mais pesada que os outros dias. Terminada a aula fomos para a roda de samba. Minhas primas, assustadíssimas, mas eu já estava acostumada com as inspeções diárias no meu carro, a caminho da faculdade, e tranqüilizei-as.
A gente se acostuma até com o que é ruim, e aquela ausência de medo era um jeito que aprendemos de conviver com a ditadura. Não podíamos nos refugiar em casa. A melhor forma de enfrentar o inimigo é mostrando a cara. É o que dizem os oprimidos, e os discriminados, e eu concordo.
Chegando ao sambão nos esquecemos daquele incidente e nos integramos aos que dançavam. No meio da festa o som parou de repente, antes de o samba acabar. E demorou alguns segundos para que nos déssemos conta da presença de soldados do exército com metralhadoras procurando alguém.
As portas se fecharam e eles ordenaram que todos se encostassem à parede com as mãos na cabeça. Uma de minhas primas começou a chorar e a tremer, apavorada, e tirou as mãos da cabeça. Imediatamente um dos soldados gritou com ela e mandou-a parar de chorar.
Logo depois, eles pegaram um rapaz e o levaram. O silêncio tomou conta de tudo e voltamos para casa..
“Ai, mas quem virá
Me pergunto a toda hora
E a resposta é o silêncio
Que atravessa a madrugada”
Aquele era apenas mais um dia vivido naqueles tempos de chumbo. Tempos que, quem não viveu não entende porque nos dói tanto, porque não conseguimos esquecer.
Ah...Elton Medeiros a que viagem você me levou...
Sua voz continua no aparelho de som. Vai tocar o dia todo. Quero impregnar minha alma com seu canto. Só agora percebo como suas letras têm a ver com minha vida. Obrigada, mestre, por me trazer de volta não apenas o que foi ruim, mas um pouco da felicidade que consegui arrancar da vida naqueles dias.
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
É verdade Riso, só quem viveu...sabe.
ResponderExcluirSó quem viveu...sente dor.
Belo texto.
Beijos
Que bom você escrever com beleza e alegria sobre um momento tão dificil, Risomar! Beijos.
ResponderExcluirNa época meu pai exaltava a "Revolução" e a minha mãe a criticava. Tudo parecia tão distante de nós, meninas de 13 anos. Apenas em 1980, quando eu fui fazer residência médica em Belo Horizonte, pude compreender a extensão e a crueldade dos anos de chumbo, e fiquei envergonhada pela minha ignorância. Entendo sua emoção e admiro a coragem de tantas moças, como você, como Dilma, que em nome da liberdade e da democracia corriam risco de vida.
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