segunda-feira, 12 de outubro de 2009




A sede de existir me guiou até aqui

* Por Eduardo Murta

São dois os velhinhos às margens da Lagoa da Pampulha naquele fim de tarde. Sonolenta calmaria. Dividem as silhuetas com a ondulação oceânica da Igrejinha de São Francisco. Um brinco àquela paisagem. Ambos falam baixo, pausado, e daqui quase nada se ouve do que contam. Mas as mãos são capazes de apontar minúcias reveladoras. Uma delas desponta, sinalizando eternidade. Isso.... eternidade...

Não o bastante para instaurar um diálogo de concordância. O da esquerda baliza a cabeça negativamente e desacelera a conversa, num recuo pensado. Alimenta-se do charuto já curto, as brasas intensas. Dá impressão de provocar. E deixa a fumaça reinar entre ambos, como houvesse um hiato de sombras naquele encontro. Talvez houvesse, inda que as cadeiras de balanço cortem o ar no mesmo e preciso movimento.

Alargo a observação, pinço daqui uma só frase e ela é síntese a que tudo se compreenda. O da direita, que soa ser uma espécie de carpinteiro-mor, parece sugerir ao outro a passagem dessa para uma segunda estação, em que o homem que lhe ouve ganharia leveza de anjos em spa espiritual. Expõe, e explica que no plano que propõe seria semelhante à sensação a alguém que depara com as obras dele espalhadas pelos vários cantos do mundo: como céus e terra flutuassem.

E descreve arcos, parábolas, colunas, a ponto de surpreender o interlocutor, tamanha riqueza das simbologias. O da esquerda então pergunta se, como ele, era também arquiteto. A resposta veio inconclusiva e, contra-senso, carregada em textura e robustez absolutas. Disse que era um pouco de cada coisa. Do vento ao barro, às escalas geométricas, ao silêncio e aos fenômenos que ciência alguma explicaria.

Ouvindo assim, o velhinho se ajeitou à cadeira. Pigarreou. Pôs olhar fixo no visitante, a conferir se já não o vira numa de suas tantas andanças pelo mundo. A face lhe remetia a familiaridade, mas resistia a ter um pingo de convicção. Temor, talvez, de que fosse exatamente o que imaginava.

Daí deu a falar sobre aquecimento global, calotas polares, novas constelações, tratados próprios da poesia no Oriente Médio e chás que curavam de insônia a mal de amor. Ia prosseguindo, elencando os pássaros que retornavam à cena urbana, quando os dedos leves, beirando o celestial, lhe apartaram. Bem-vindas as amenidades, mas fora ali falar de assunto de outra ordem.

As miradas se cruzaram neste instante, e os sentidos foram saltando-lhe, como rãs que reverenciam a chuva breve. Agora entendera, sem porém compreender. Que audiências divinas eram aquelas, se ele figurava no clube de ateu declarado e militante? Gestos trêmulos, interrompeu o balanço de sua cadeira, a que se movesse em freqüência distinta.

Presumiu que o movimento uniforme, ali, seria sinal de concordância à transição para a tal atmosfera que não pertencia à natureza dos vivos. Não, jeito algum. Fechou os olhos, deixou que tudo estacionasse, e os reabriu em seguida. Conferiu ao lado o assento, sob uma pitada de medo. E eram três garças – só elas -, das de um branco em neve absoluto, lhe contemplando como a uma obra de arte. Reverentes. A caminho dos 102 anos, Niemeyer, Oscar, o arquiteto, respirou aliviado. Bradou pelos assistentes. Pediu papel, lápis preto. Estava mais inspirado do que nunca. A sede de existência era o que o guiava.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

4 comentários:

  1. A arte de criar tem muito de divino, mesmo para um ateu convicto como Oscar Niemeyer. Bravo aos dois: Murta e o arquiteto que já virou verbete. Assim, as próximas gerações não dirão arquiteto, mas chamarão pelo sobrenome dele.

    ResponderExcluir
  2. Um belo texto a uma bela pessoa. Parabéns, Murta!

    ResponderExcluir
  3. A obra de Niemeyer é uma afirmação da vida, é a crença de que a poesia do traço torna leve a tonelagem do concreto e a mantém suspensa no pasmo do admirador. À altura de uma façanha dessas, só a tua crônica, Murta. Parabéns.

    ResponderExcluir
  4. É de fato um mago, sem trocadilho, um poeta concretista.... Abraços a todos.

    ResponderExcluir