Raimundo Carrero é um autor visionário
* Por Marco Albertim
Uma narrativa que atesta as múltiplas possibilidades de expressão do gênero romance. Assim o faz Raimundo Carrero, sem prejuízo do enredo, sem se perder nos delírios da personagem; sem, o que seria mais difícil num autor estreante, deter-se ou desviar a narrativa, no personagem que - Conrado - de tanto amar a morte “(...) não queria morrer definitivamente (...) Porque acreditava que somente com vida podia amá-la.” Não é subjetivismo, é a exploração da subjetividade do ser, ou o rastreamento de sua abstração. Mas, diga-se, A minha alma é irmã de Deus não é obra de fácil leitura, não para o leitor desavisado. O estilo de Carrero é límpido , sem lesões. A técnica dos diálogos, inda que não seja só sua, porquanto dela fizeram uso outros autores, junta a voz de um personagem à de outro ou de outros, sem mistura de pensamentos, sem confusões. É uma promiscuidade de vozes legítima. Imagine-se um trânsito caótico, de difícil fluxo, mas escoando graças à hábil intervenção do guarda com seu apito. No caso, Carrero é o guarda; sem apito, mas com o conhecimento do rumo que cada personagem seu deve seguir. Com a mesma habilidade, o autor se utiliza de um narrador oculto para, sem interrupção ou mudança de parágrafo, dar voz à personagem visível.
Ilustrativo do primeiro caso é o trecho em que Camila se deixa sequestrar. O escritor entranhou-se na própria criação, engendrando um sequestro consentido para tirar proveito do desdobramento. “Depois ela parou junto a ele, controlando-se e, ainda mais, soluçando, como se tivesse mesmo acabado de chorar. Olharam-se, os dois olharam-se, e os sorrisos ainda estavam nos lábios, ó beija-me com os beijos de sua boca, que batom estava usando, qual a cor? Cantavam. Ali mesmo, outra vez, cantavam. Até que ele a chamou vamos para minha casa? Onde? Para minha casa, na Praça Chora Menino, você aceita? Os dois seguiram, ouvindo os hinos religiosos na pracinha...” Há a intervenção de três agentes da trama romanesca: narrador oculto; Camila, que se deixa sequestrar; e Leonardo, seu sequestrador. Ao trecho, o autor dá o nome de Ó, Amado, Ó; singelo e trágico.
O segundo caso, em que o narrador onipresente dá a vez à prostituta Raquel, sem o uso de aspas mas tão simples quanto eloquente: “Ouvira dela que se prostituíra não por atração carnal, mulher que se atira no fogo da luxúria, o desejo, vulgar, de me envolver com homens é algo permanente, sempre foi assim e não sinto vergonha, remorso ou arrependimento, orgulho-me de cumprir o meu destino, quero emprestar meu sangue para eles, que só experimentam a fome.” O parágrafo termina com a intervenção do narrador oculto, sem o recurso de sinuosidades entre um agente e outro; e tem o sabor da prosa escorreita. Dir-se-ia uma pausa... Ou trégua com que o autor brinda o leitor.
Raimundo Carrero é um escritor cristão, o que não depõe contra nem a favor de sua obra. É um criador, no caso, de personagem que se promiscui quando incorpora outras, sem preocupação com o zelo do ventre; que santifica-se ante a perspectiva de se integrar ao “exército das onze mil virgens.” Sobre Camila, num de seus delírios, revela-a e revela-se: “ Lia a vida de Santa Teresa de Lixieux (...), e a vida de Maria, a Mãe de Deus, o encantado silêncio da humildade.” Mostrou-se cristão, mostrou-se capaz de concentração poética. A mesma concentração moveu-o a descrever a tormenta de corações numa casa deserta, em ruínas: “A casa tornava-se inquieta, quase não se falava, era impossível falar.” Metáfora robusta!
O romance é dividido em três partes; cada uma com várias sessões, porquanto se trata de “um afresco”, no dizer do autor. Na primeira, chama a atenção a correção, a leveza com que a narrativa transcorre – Lábios masculinos. No começo, refere-se “a prostituição, o vício, a putaria, enfim, que o viu, olhos profissionais de fotógrafa.” Camila está na Praça da Independência, mas o autor não se socorre nas minúcias da alvenaria da praça para situar a personagem, opta pelo cenário humano. Para, no fim, dizer: “No entanto, naquele tempo e naquela hora, não percebeu nem que era um hino.” Leonardo, mistura de bêbado e Messias, no pregão do evangelho. Também a sessão seguinte – Incendiada de Amor – é marcada pelo tempero da prosa. Há equilíbrio entre cenário e abstrações, sem culto ao lugar nem psicologismo.
O traço machadiano em Carrero, o visível, está na técnica de deixar que uma palavra atraia outra; sem estranheza para o texto, sem texturas artificiais. Percebe-se onde está escrito “e a mãe, na paciência de mãe, ou na covardia de mãe, tirava e guardava...” E ainda, acercando-se da personagem “... fazendo ruídos com as sandálias, quando estava de sandálias, ou de sapato, quando estava de sapato...” É de se notar que cada personagem tem um entorno próprio, como Conrado, “o homem que andava de costas para encontrar o passado.” É a cancha que o escritor antevê para fazer o texto crescer, crescer e dar cores aos personagens. Também assim, Camila se dá conta de que “Ter um corpo é algo tão limitador,” depois de se pergunt ar: “Mas um corpo é assim mesmo? Não sei, pode ser.” A partir de Horror, Horror, o romance já está no fim, sente-se alguma pena com o pressentimento do final da leitura.
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
Uma narrativa que atesta as múltiplas possibilidades de expressão do gênero romance. Assim o faz Raimundo Carrero, sem prejuízo do enredo, sem se perder nos delírios da personagem; sem, o que seria mais difícil num autor estreante, deter-se ou desviar a narrativa, no personagem que - Conrado - de tanto amar a morte “(...) não queria morrer definitivamente (...) Porque acreditava que somente com vida podia amá-la.” Não é subjetivismo, é a exploração da subjetividade do ser, ou o rastreamento de sua abstração. Mas, diga-se, A minha alma é irmã de Deus não é obra de fácil leitura, não para o leitor desavisado. O estilo de Carrero é límpido , sem lesões. A técnica dos diálogos, inda que não seja só sua, porquanto dela fizeram uso outros autores, junta a voz de um personagem à de outro ou de outros, sem mistura de pensamentos, sem confusões. É uma promiscuidade de vozes legítima. Imagine-se um trânsito caótico, de difícil fluxo, mas escoando graças à hábil intervenção do guarda com seu apito. No caso, Carrero é o guarda; sem apito, mas com o conhecimento do rumo que cada personagem seu deve seguir. Com a mesma habilidade, o autor se utiliza de um narrador oculto para, sem interrupção ou mudança de parágrafo, dar voz à personagem visível.
Ilustrativo do primeiro caso é o trecho em que Camila se deixa sequestrar. O escritor entranhou-se na própria criação, engendrando um sequestro consentido para tirar proveito do desdobramento. “Depois ela parou junto a ele, controlando-se e, ainda mais, soluçando, como se tivesse mesmo acabado de chorar. Olharam-se, os dois olharam-se, e os sorrisos ainda estavam nos lábios, ó beija-me com os beijos de sua boca, que batom estava usando, qual a cor? Cantavam. Ali mesmo, outra vez, cantavam. Até que ele a chamou vamos para minha casa? Onde? Para minha casa, na Praça Chora Menino, você aceita? Os dois seguiram, ouvindo os hinos religiosos na pracinha...” Há a intervenção de três agentes da trama romanesca: narrador oculto; Camila, que se deixa sequestrar; e Leonardo, seu sequestrador. Ao trecho, o autor dá o nome de Ó, Amado, Ó; singelo e trágico.
O segundo caso, em que o narrador onipresente dá a vez à prostituta Raquel, sem o uso de aspas mas tão simples quanto eloquente: “Ouvira dela que se prostituíra não por atração carnal, mulher que se atira no fogo da luxúria, o desejo, vulgar, de me envolver com homens é algo permanente, sempre foi assim e não sinto vergonha, remorso ou arrependimento, orgulho-me de cumprir o meu destino, quero emprestar meu sangue para eles, que só experimentam a fome.” O parágrafo termina com a intervenção do narrador oculto, sem o recurso de sinuosidades entre um agente e outro; e tem o sabor da prosa escorreita. Dir-se-ia uma pausa... Ou trégua com que o autor brinda o leitor.
Raimundo Carrero é um escritor cristão, o que não depõe contra nem a favor de sua obra. É um criador, no caso, de personagem que se promiscui quando incorpora outras, sem preocupação com o zelo do ventre; que santifica-se ante a perspectiva de se integrar ao “exército das onze mil virgens.” Sobre Camila, num de seus delírios, revela-a e revela-se: “ Lia a vida de Santa Teresa de Lixieux (...), e a vida de Maria, a Mãe de Deus, o encantado silêncio da humildade.” Mostrou-se cristão, mostrou-se capaz de concentração poética. A mesma concentração moveu-o a descrever a tormenta de corações numa casa deserta, em ruínas: “A casa tornava-se inquieta, quase não se falava, era impossível falar.” Metáfora robusta!
O romance é dividido em três partes; cada uma com várias sessões, porquanto se trata de “um afresco”, no dizer do autor. Na primeira, chama a atenção a correção, a leveza com que a narrativa transcorre – Lábios masculinos. No começo, refere-se “a prostituição, o vício, a putaria, enfim, que o viu, olhos profissionais de fotógrafa.” Camila está na Praça da Independência, mas o autor não se socorre nas minúcias da alvenaria da praça para situar a personagem, opta pelo cenário humano. Para, no fim, dizer: “No entanto, naquele tempo e naquela hora, não percebeu nem que era um hino.” Leonardo, mistura de bêbado e Messias, no pregão do evangelho. Também a sessão seguinte – Incendiada de Amor – é marcada pelo tempero da prosa. Há equilíbrio entre cenário e abstrações, sem culto ao lugar nem psicologismo.
O traço machadiano em Carrero, o visível, está na técnica de deixar que uma palavra atraia outra; sem estranheza para o texto, sem texturas artificiais. Percebe-se onde está escrito “e a mãe, na paciência de mãe, ou na covardia de mãe, tirava e guardava...” E ainda, acercando-se da personagem “... fazendo ruídos com as sandálias, quando estava de sandálias, ou de sapato, quando estava de sapato...” É de se notar que cada personagem tem um entorno próprio, como Conrado, “o homem que andava de costas para encontrar o passado.” É a cancha que o escritor antevê para fazer o texto crescer, crescer e dar cores aos personagens. Também assim, Camila se dá conta de que “Ter um corpo é algo tão limitador,” depois de se pergunt ar: “Mas um corpo é assim mesmo? Não sei, pode ser.” A partir de Horror, Horror, o romance já está no fim, sente-se alguma pena com o pressentimento do final da leitura.
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
Prezado Marco Albertim: Tenho lido seus artigos sobre os meus livros e fico muito honrado. Afinal, o senhor tem grandes qualidades de crítico, é arguto e procura analisar com isenção. Ótimo. É verdade que aqui e ali discordo de alguma coisa, mas fico alegre que faça os comentários com a elegância e a habilidade de sempre. Discordar é natural e é um direito. Sobretudo com sua habilidade e o seu respeito pelo escritor. Seus trabalhos são ótimos. Parabéns. Abs de Raimundo Carrero
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