sexta-feira, 9 de outubro de 2009




O começo da tempestade

* Por Urariano Mota

O cadáver de uma aluna caiu como um raio no Colégio Dom Vital, naquela terça-feira. Era manhã de junho de 2001.

Ainda não havia tocado o fim da terceira aula, quando o professor Gusmão ouviu, no que lhe pareceu, um tropel de bestas, de cavalos, um estouro de animais em disparada no corredor. E gritos, dessa vez humanos, e imprecações de desespero de mulheres, de professores, e de alunos, sobre o barulho de passos fortes, descidas de bater de pilão em descompasso ao largo da porta fechada de sua sala. Ele mal havia escrito na lousa a fórmula de Bháskara, e, entre conter a agitação da turma, que se levantara e mandava ao diabo aquelas letras hieroglíficas, entre reprimir a balbúrdia dos alunos e saber o que houve, ele não soube, ele se viu empurrado para a porta, ele se viu de repente perguntando à massa que fugia no corredor:

-O que foi? O que é isto?

Ao que não lhe responderam, porque ele acreditou ter ouvido ao vento:

-Mataram. Mataram o diretor.

Gusmão não se conteve. Mais tarde não saberia dizer se de pânico ou de contentamento, repentinamente estava ele próprio, com a carga de sua larga barriga à frente, aos atropelos, no interior da onda que descia as escadas, rumo aonde o arrastavam. O que quer que fosse, o ciclone, o caos, ganhou a sala dos professores, voltou, ganhou a quadra, subiu um degrau à direita, e dessa vez num tropeço quase ele caiu, e bateu contra outro quê, uma confusão de massa maior que se comprimia à porta da sala do Jardim 2. Então ele viu, pela primeira vez ele viu, ouviu, um quê mais real, inteligível, a própria voz do morto, daquele que por secreto desejo ele achava que já haviam matado: a voz de trovão de Saulo, o diretor. Imponente, ele e sua voz vinham descendo da secretaria.

-Que anarquia é esta?! Dona Lurdes, chame esses meninos à ordem.

Dona Lurdes, a coordenadora, apareceu pálida, sem cores, os olhos esbugalhados. Ela gritou à imponência que a passo lento vinha em meio à escada, gritou, não, esguichou numa voz que era um misto de súplica, de recurso a um poder superior, e de queixa por mais uma falta dos meninos que nunca pôde disciplinar:

-Professor... – e procurou lágrimas, que não lhe vinham – professor.... Mataram uma aluna!

Saulo, à maneira de quando vemos alguém súbito que não queríamos, e tiramos rápido a vista, num reflexo sem tempo de ser consciente, e logo depois arrependemo-nos, porque é imperioso vê-lo, pois esse alguém está à nossa frente, Saulo quis voltar, dizer mais uma vez à coordenadora, “isto é problema seu, vire-se”. Saulo quis tornar a subir e voltar a seu nicho, mas era tarde, a massa o exigia, e por isso desceu outro degrau, em câmera lenta, pesado, arrastando-se nos seus cento e trinta e cinco quilos.

-O quê ? ! – E foi descendo, e foi falando sem se dar conta: - O quê? O quê que é que ... Escândalo é este? Sem pé sem cabeça ...A senhora está doida?

-Morta, professor. Ela está morta.

-Quem?

-Uma aluna, professor – e, desta vez, as lágrimas buscadas começaram a lhe correr.

-Aluna, morta ... a senhora está enganada. – E procurou apoio em sua costumeira atitude de reagir a situações de conflito com fórmulas conciliatórias, de senso comum, que chutavam a resolução para um dia no infinito: - Claro, é um engano. Vai ver é só um desmaio, professora. Vai ver, ela passou mal, coitadinha, essas meninas são assim, já começam a ficar histéricas, é só um tapa no rosto, professora, e ela volta a passar bem. Com força, sabe, professora? No rosto. Ela balança a cabeça, ela torna. Vá buscar uma agüinha com açúcar, vá. Isso se resolve. – E chegando-se à massa, enquanto forçava a passagem: - Calma, não foi nada. É só uma aluna dormindo. Afastem-se! Pra quê tanta gente? A menina não pode nem respirar. Afastem-se. Com licença.

Então o senhor Diretor conseguiu vislumbrar um corpo de menina adolescente, nos seus 12 anos, com a blusa e a insígnia do Dom Vital, estendido sobre o birô, de calcinhas, a calça jeans ao lado, com os cabelos longos em desalinho. Os olhares iam da menina ao diretor, à espera das medidas que resolveriam o ..... aquilo. Saulo deteve-se. De certa forma temeu a aproximação, e por nada fazer, procurou tomar ares de quem age, fazendo perguntas burocráticas, o que mais tarde seria lembrado nas críticas ferozes dos professores. Perfilado, imponente e impotente, perguntava coisas do gênero:

-Quem é ela? Vocês sabem o nome dela?

-É Cristina, professor.

-Ela é mesmo nossa aluna? Não a estou reconhecendo.

-É Cristina, professor, da sexta série.

-Cristina.. sexta série ... assim, não me lembro.

-A de olhos verdes. A representante da turma. Ainda ontem, esteve em reunião com o senhor.

-Ah .. – E sorriu, bonachão, como se tivesse, com esse “ah”, poderes de fazê-la tornar ao mundo dos vivos. Mas logo desfez o sorriso, por sabê-lo fora de propósito naquelas circunstâncias. Tomou então um ar piedoso, sobrancelhas oblíquas, mãos cruzadas à frente, balançando o queixo. – Ah... Boa aluna, comportada? Lembro. Cristina, muito boa menina. – E atentando para a seminudez da criança. – Por que ela está assim? Vistam a roupinha dela. Não fica bem.

-E nós vamos mexer no cadáver? Temos que deixá-la do jeito que está, para a polícia – observou um professor.

Ao que o senhor Diretor acordou de suas considerações bondosas. Voltou-se alto, jorrando poderes para afogar o insolente:

-Que cadáver, professor? O senhor está louco?! Vamos .. – e avançou dois passos, para tocar nos braços da menina. Foi tocar e recuar, como se houvesse recebido um choque. Os bracinhos que foram tenros começavam a enrijecer. Mas não se deu por vencido. Ordenou: - Vamos, vistam a aluna. Carreguem essa menina para o hospital. Rápido.

-Mas professor, ela não já está morta?

Então ele procurou algo em latim que o justificasse. Não o achando, citou no português da ocasião:

-O perigo é a demora. Rápido.

E o corpinho da menina, enrijecendo, foi levantado por mãos solícitas de serventes, com as calças jeans por cima, qual meio cobertor deixando o dorso das coxas exposto. Erguido, o corpinho foi levado como um andor até a quadra de esportes, seguido por ruidosa procissão. Ali, embaixo da cesta de basquete, o cortejo parou. Para onde ir?

-Ao hospital – comandou Saulo.

-Que hospital, professor?

-Peguem o meu carro, rápido, vamos.

-Mas para que hospital, professor?

-Ora, para o mais próximo. É por minha conta!

A coordenadora, com os olhos já enxutos, estacou impávida. Acostumada às promessas de dinheiro, de pagamento, que nunca se cumpriam, ousou perguntar ao diretor:

-Saulo, é preciso pagar ao hospital. O senhor paga?

O diretor rodou. Olhou para os lados, - “e agora mais esta” – fez menção de sacar a carteira, reteve-se, e reordenou:

-Levem para o primeiro hospital público. É de urgência, a senhora não está vendo? – E derramou o óbolo de sua condolência: - Tome as chaves do meu carro.

Como um troféu de guerra, firme, sobre muitos braços, o cadáver de Cristina passou por cima das cabeças dos estudantes, que nada compreendiam, embora tivessem todos os olhos muito atentos, arregalados.

As aulas estavam suspensas.


* De “O Caso Dom Vital”.

* Jornalista e escritor

3 comentários:

  1. Quem sempre sabe o que fazer perde o rumo diante do inesperado. A morte de uma jovem acaba com todas as certezas. Perde o fôlego o diretor e o leitor. Quanto a mim, melhor que eu peça água e o intervalo: um instante maestro!

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  2. Que coisa, hein! Que narrativa densa e tensa! Só podia ser Urariano e seu absurdo talento. Parabéns.

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  3. Ô Daniel, Ô Mara, vocês comentam, eu sem tempo de responder, mas a falta de resposta a vocês me persegue.
    Muito obrigado. Absurda é a generosidade de vocês.

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