O Casarão de Santa Teresa
* Por Risomar Fasanaro
Delicadeza de pássaro. São meus passos dentro da noite. Entro no banheiro, caminho pela sala, e passo pelo corredor sem acender a luz. O que busco? Procuro o quê? Talvez um pedaço de mim na rachadura de porcelana ou nas pétalas secas de acácia, presas entre as páginas de um livro mil vezes relido.
Procuro não incomodar os pássaros, meus iguais, presos nas gaiolas, àquela hora dormindo. Talvez me sinta, eu mesma, engaiolada. Uma mulher noturna caminhando dentro da noite sem esbarrar em nenhum móvel, tocando apenas de leve as paredes de onde a fitam os antepassados, também presos em molduras antigas.
E por ser noite sou também manhã quando acendo a chama de gás, e acordo o sol com o cheiro de café. É ele que me aquece o peito e me prepara para as tragédias do jornal que leio toda manhã. E hoje, enquanto lia, comecei a relembrar minha infância, e o que me levou a escrever este livro.
Criança, me vejo em um casarão antigo no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Era um sobrado branco com janelas enormes, pintadas de azul escuro.
Subimos, meus pais, meus irmãos e eu, uma enorme escadaria. Percorro aquela casa com paredes tão altas, que eu precisava dobrar a cabeça toda para trás, para conseguir ver o teto, todo pintado com guirlandas de flores azuis e rosa bem clarinhos, sobre um fundo branco.
Enquanto minha mãe e minha madrinha conversam com a dona da casa, entro em quartos, quartos e quartos, todos mobiliados com camas de casal e camiseiras de madeira escura. Sobre cada camiseira uma bacia e uma jarra, algumas de louça decorada com flores, outras de ágata e algumas de metal. Os quartos davam para um corredor com piso de tábuas tão enceradas, que era possível mirar-se nele.
Desde que entrei, a casa me despertou curiosidade. Naquela tarde, relembro hoje, me vejo sozinha em um pequeno jardim de inverno com piso de vidro em duas tonalidades de verde. Sobre ele, vasos de barro tão cobertos de limo que pareciam ter brotado das frestas de vidro e, dentro deles, vários pés de hortênsias e gerânios. Alguns daqueles vasos estavam pendurados, e deles escorriam cabelos de samambaias.
Uma luz suave passava através do teto, tingindo folhas e flores de violeta, verde, amarelo e rosa. A princípio não entendi o porquê daquelas cores. E quando olhei para cima e vi o teto em forma de vitral onde um São Francisco cercado de pássaros se destacava, emudeci. Jamais vira coisa igual. Não sei quanto tempo fiquei ali contemplando aquela imagem, inteiramente fora de mim. A contemplação só terminou quando vieram me buscar para ir embora.
Do que se falou naquela tarde muito pouco ficou. Lembro-me de fragmentos de frases ditas pela dona da casa, mulher muito bonita, com certo ar de mistério. De tudo o que mais gravei foi a revelação que fez à minha mãe sobre o segredo de sua juventude: só lavava o rosto com água que dormisse no sereno. Ao ouvi-la, a imagem do luar mergulhado em uma bacia d’agua, me veio à cabeça, e achei que seu mistério vinha daquele pacto com a lua.
O que minha inocência não percebera era que aquele casarão com tantos quartos fora, no início do século, um famoso prostíbulo, e que ali, muitas moças tinham “se perdido”, como se dizia na época. Só pouco antes de morrer, minha mãe me revelou aquele segredo guardado a sete chaves.
Trecho do Capítulo I de “Eu: primeira pessoa, singular”- Editora TM; São Carlos, SP:EDUFSCar, 1996.
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
* Por Risomar Fasanaro
Delicadeza de pássaro. São meus passos dentro da noite. Entro no banheiro, caminho pela sala, e passo pelo corredor sem acender a luz. O que busco? Procuro o quê? Talvez um pedaço de mim na rachadura de porcelana ou nas pétalas secas de acácia, presas entre as páginas de um livro mil vezes relido.
Procuro não incomodar os pássaros, meus iguais, presos nas gaiolas, àquela hora dormindo. Talvez me sinta, eu mesma, engaiolada. Uma mulher noturna caminhando dentro da noite sem esbarrar em nenhum móvel, tocando apenas de leve as paredes de onde a fitam os antepassados, também presos em molduras antigas.
E por ser noite sou também manhã quando acendo a chama de gás, e acordo o sol com o cheiro de café. É ele que me aquece o peito e me prepara para as tragédias do jornal que leio toda manhã. E hoje, enquanto lia, comecei a relembrar minha infância, e o que me levou a escrever este livro.
Criança, me vejo em um casarão antigo no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Era um sobrado branco com janelas enormes, pintadas de azul escuro.
Subimos, meus pais, meus irmãos e eu, uma enorme escadaria. Percorro aquela casa com paredes tão altas, que eu precisava dobrar a cabeça toda para trás, para conseguir ver o teto, todo pintado com guirlandas de flores azuis e rosa bem clarinhos, sobre um fundo branco.
Enquanto minha mãe e minha madrinha conversam com a dona da casa, entro em quartos, quartos e quartos, todos mobiliados com camas de casal e camiseiras de madeira escura. Sobre cada camiseira uma bacia e uma jarra, algumas de louça decorada com flores, outras de ágata e algumas de metal. Os quartos davam para um corredor com piso de tábuas tão enceradas, que era possível mirar-se nele.
Desde que entrei, a casa me despertou curiosidade. Naquela tarde, relembro hoje, me vejo sozinha em um pequeno jardim de inverno com piso de vidro em duas tonalidades de verde. Sobre ele, vasos de barro tão cobertos de limo que pareciam ter brotado das frestas de vidro e, dentro deles, vários pés de hortênsias e gerânios. Alguns daqueles vasos estavam pendurados, e deles escorriam cabelos de samambaias.
Uma luz suave passava através do teto, tingindo folhas e flores de violeta, verde, amarelo e rosa. A princípio não entendi o porquê daquelas cores. E quando olhei para cima e vi o teto em forma de vitral onde um São Francisco cercado de pássaros se destacava, emudeci. Jamais vira coisa igual. Não sei quanto tempo fiquei ali contemplando aquela imagem, inteiramente fora de mim. A contemplação só terminou quando vieram me buscar para ir embora.
Do que se falou naquela tarde muito pouco ficou. Lembro-me de fragmentos de frases ditas pela dona da casa, mulher muito bonita, com certo ar de mistério. De tudo o que mais gravei foi a revelação que fez à minha mãe sobre o segredo de sua juventude: só lavava o rosto com água que dormisse no sereno. Ao ouvi-la, a imagem do luar mergulhado em uma bacia d’agua, me veio à cabeça, e achei que seu mistério vinha daquele pacto com a lua.
O que minha inocência não percebera era que aquele casarão com tantos quartos fora, no início do século, um famoso prostíbulo, e que ali, muitas moças tinham “se perdido”, como se dizia na época. Só pouco antes de morrer, minha mãe me revelou aquele segredo guardado a sete chaves.
Trecho do Capítulo I de “Eu: primeira pessoa, singular”- Editora TM; São Carlos, SP:EDUFSCar, 1996.
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Seria o famoso casarão da rua Alice? Apesar da favelização, o bairro mantém o charme sombrio, romântico, elegante da belle-époque. Também eu morei numa casa assim no Largo das Neves em meados dos anos 70. Quem sabe não passamos um pelo outro nas ladeiras e escadarias do bairro, hein, Ris? Deixo abraços e os parabéns por mais esta crônica gostosa como média com pão e manteiga.
ResponderExcluirQue beleza de lembranças, que poesia, que saudade!
ResponderExcluirDestaco: " E por ser noite sou também manhã quando acendo a chama de gás, e acordo o sol com o cheiro de café".
Obrigada à Mara e ao Daniel. Não saberia dizer o nome da rua, Daniel, só estive nesse casarão uma vez, vinha do Recife e o navio atracou no Rio. Minha mãe era amiga da filha da dona do casarão, por isso a visita.
ResponderExcluirBeijos nos dois
Ris