segunda-feira, 6 de julho de 2009




Fórceps

* Por Mara Narciso

Pariu na dor a fórceps rasgando sua feminilidade interna e externa. Após várias cirurgias pretendidas corretivas o aspecto externo era sofrível, mas o psíquico definitivamente destruído. Ainda teve dois filhos, só que, previsivelmente, passou a detestar sexo.

Buscou na religião um derivativo para o imenso vazio da sua existência pobre. Bonita, meiga, suave, os cabelos negros quase no chão ao lado da barra da saia, só na igreja encontrava refúgio e conforto.

Fazia biscoitos que o marido vendia no bairro da pequena cidade. Vivia sob a batuta do desprezo marital, que quando flagrado no vício solitário, dizia agressivamente preferir essa alternativa, a encostar-se a ela.

Muitas vezes as críticas estiveram duras demais, e um dia ele a ameaçou dizendo que um travesseiro bem colocado sobre o rosto dela durante o sono a colocaria fora de combate. Foi o que bastou.

Depois de vinte anos de união, pegou a sua trouxa com alguns molambos e foi embora. Para onde? Nem os filhos souberam. Tinha quarenta anos, para enfim nascer, e novamente á fórceps.

* Médica, acadêmica de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”



5 comentários:

  1. Dor física, psíquica e espiritual. Dor demais para uma pessoa só, dor demais para quem vive se doando! E ela renasceu, graças, em parte, ao rocegar suave da tua pena, cara Mara. Parabéns, grande parteira!

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  2. Adorei o renascimento que por vezes só ocorre á fórceps, mas ainda assim renova. Parabéns e beijos, Mara!

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  3. Daniel, adorei seu elogio. Preciso e até tento ser parteira de mim mesma. Prometo me empenhar mais e mais. Obrigada!
    Evelyne, estou renascendo, e isso é muito bom. Obrigada pela leitura e comentário.

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  4. É interessante e peculiar sua forma de tratar literária e ficcionalmente o material que você garimpa em seu cotidiano médico, trazendo sempre uma lição de vida. Ótimo texto, Mara, como sempre. Um grande abraço.

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  5. Marcelo, no dia a dia somos apresentados para pessoas que nos abrem a alma e o coração. Juntamos várias para formar uma, ou dividimos uma para formar várias. Recrio a realidade, mas sempre com um toque de real acontecido. Agradeço o comentário. Obrigada!

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