Marcondes
Namblá: desenhando com o próprio sangue
* Por
José Ribamar Bessa Freire
“…
meu
ódio é o melhor de mim
Com
ele me salvo
e
dou aos poucos
uma
esperança mínima”.(Carlos
Drummond – A flor e a náusea)
-
Faça um desenho mostrando como são tratados, hoje, os índios no
Brasil, imaginando que daqui a 400 anos um historiador o encontrará
num arquivo junto com outros documentos que atravessaram o tempo.
Dei
essa tarefa, em outubro de 2013, aos alunos do Curso de Licenciatura
Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Entre eles, Marcondes Namblá,
professor Laklãnõ/Xokleng da Terra Indígena Alto Vale do Itajaí.
Ninguém podia imaginar que, quatro anos depois, o desenho seria
feito com sua própria vida, isto é, com sua morte. Ele foi
assassinado a pauladas, com o crânio fraturado, neste primeiro de
janeiro. Tinha 38 anos, cinco filhos, um sorriso doce e cativante de
menino e deixa na orfandade as crianças da escola indígena onde
ensinava.
O
suspeito do crime Gilmar Cesar de Lima, 22 anos, residente em Gaspar
(SC), com várias passagens pela polícia, teve prisão preventiva
decretada. Segundo o delegado Douglas, a polícia o identificou
através das câmeras de monitoramento que flagraram o momento do
crime cometido com um porrete. Testemunhas revelam que “Gilmar
falou a pessoas que passavam na rua que o indígena teria ‘mexido’
com o cachorro dele”. O caso, para a polícia, se encerra quando o
foragido for preso. Para nós, não.
-
“A violência contra os povos indígenas é sistemática, diária,
individual e coletiva” – denuncia o Núcleo de Estudos dos Povos
Indígenas (NEPI) da UFSC, o que é confirmado pelo Conselho
Indigenista Missionário (CIMI) em nota na qual denuncia “a onda de
intolerância racista contra indígenas no litoral de Santa Catarina,
estimulada pelas autoridades municipais que não aceitam o fato de os
indígenas frequentarem as praias”.
Efetivamente,
agressões, humilhações e discriminação acontecem com muita
frequência, inclusive contra crianças, mas só são registradas em
caso de morte. Há dois anos, o Brasil acompanhou, estarrecido, o
enterro no dia 1º de janeiro de Vítor, bebé kaingang de dois anos,
degolado por um jovem de 23 anos na rodoviária de Imbituba (SC)
diante da própria mãe. As agressões aumentam, ironicamente, nas
festas de Natal, quando muitos índios saem de suas aldeias para
vender artesanato aos turistas, ou no caso de Namblá, para vender
picolé numa praia em Penha.
Brinquedos
e brincadeiras
Por
que alguém, pertencente à espécie humana, age como uma besta-fera
e mata um semelhante que esboça gesto de carinho a um cachorro? O
que ele ganha com isso? Em qual escola estudou? Quem colocou merda
nesse cérebro criminoso? Por que ceifou a vida de um pesquisador
promissor que em novembro último impressionou o público do III
Seminário Crianças e Infâncias Indígenas com a apresentação dos
resultados de sua pesquisa? Na ocasião, Namblá revelou à
antropóloga Antonella Tassinari seus planos de ingressar no mestrado
para continuar investigando a infância indígena.
Esse
foi o tema de sua monografia de conclusão de curso em abril de 2015.
Ele pesquisou a prática dos banhos nos rios, mostrando como a
construção da Barragem Norte transformou o cotidiano das crianças
Laklãnõ e prejudicou as brincadeiras infantis que usavam
vocabulários específicos na língua nativa e começam a cair no
esquecimento. Preocupado com o destino da língua materna, Namblá
estava atento para a circulação de saberes tradicionais e as
dimensões identitárias configuradas pelo território. “Ele nos
cativou com seu sorriso, entusiasmo e criatividade” - escreveu
Antonella.
Os
depoimentos de professores e colegas ressaltam a jovialidade e o
entusiasmo de Namblá pela vida. Ele era dono de uma “alegria
contagiante que nos passava com sua viola e cantorias de sempre na
UFSC” nas palavras enlutadas de sua colega, a guarani Kerexu
Yxapyry. Ele cantava e encantava.
Guardo
dele saudosas lembranças. Depois que ministrei dois módulos para
sua turma, continuamos a manter contato permanente, com troca de
mensagens pelo facebook. Numa delas, em 18/01/2014, ele escreveu:
- Olá
professor. Quero ampliar a minha pesquisa sobre a infância. Na
conversa em Foz do Iguaçu vc me falou de um autor que fala disso,
gostaria de saber o nome dele.
- Acho
que foi o Walter Benjamin –
eu respondi
- Ah,
é esse mesmo.
Dois
dias depois lhe enviei cópias do “História Cultural do Brinquedo”
e “Brinquedo e brincadeira - Observações sobre uma obra
monumental”, ambos de Benjamin. Já em 2015, Namblá comentou a
resenha que lhe enviei do livro "A
hora das crianças. Narrativas radiofônicas de Walter
Benjamin" organizada
por Rita Ribes.
Continuamos
em contato até há alguns meses quando ele escreveu: (07/03/2017):
- Olá,
professor! Td bm? Sabe eu to de saída, mas logo que vi vc conectado,
lembrei que podes me ajudar, se puder, é claro. To precisando que vc
me envie artigos científicos sobre metodologia de ensino de língua
portuguesa literatura.
Respondi:
- Oi
Namblá, veja (leonorwerneck.wixsite.com) lá você vai encontrar o
que te interessa. Acho que vale a pena consultar também a revista
“Linha D’Água” da APPL – Associação dos Professores de
Língua e Literatura. Também o artigo “Na sala de Aula” de
Antônio Cândido.
-
Valeu. Vou pesquisar o site sim. Muito obrigado
O
desenho
Esse
é Marcondes Namblá, assassinado não só por um indivíduo, que foi
apenas um instrumento, mas pela sociedade que o armou com o canhão
do preconceito. Ele e seus 35 colegas de turma, Laklano, Guarani e
Kaingang, além da dolorosa experiência pessoal, conheceram a
trajetória histórica da violência. Na disciplina Análise
e interpretação de textos que
ministrei na Licenciatura das Linguagens, em Florianópolis, todos
leram trechos da “Nova Crônica e Bom Governo” do índio andino
Felipe Guamán Poma de Ayala (1526-1615), ilustrada com 398 desenhos
encontrados na Biblioteca Real da Dinamarca só em 1908.
Foi
aí que cada aluno escolheu um desenho para comentar sua atualidade.
São imagens fortes do período colonial, de caráter narrativo, que
relatam os métodos violentos usados pelos conquistadores, num deles
está a imagem do avô do autor, Guamán Chaua, que foi queimado vivo
por Pizarro. O desenho de Poma de Ayala selecionado por Namblá foi
aquele em que violência física era cometida contra crianças
indígenas chicoteadas pelo mestre-escola.
Marcondes
Namblá escreveu comentário para avaliação da disciplina, que
depois leu no Colóquio sobre Poma de Ayala em Foz do Iguaçu, em
outubro de 2014, numa mesa com a participação dos Guarani Joana
Mongeló e Teodoro Alves, e dos professores da UNILA Clóvis
Brighenti, Giane Lessa e Mário Ramão Villaba. Em sua
homenagem, reproduzo aqui trechos do seu texto:
“A
imagem que escolhi retrata os abusos das autoridades políticas e
religiosas. Mas o que eu gostaria de deixar para a posteridade
é que a entrada da igreja dentro das terras indígenas sem dúvida é
a pior e mais eficiente arma utilizada pelos colonizadores europeus
para dominar os povos indígenas brasileiros.
“Sobre
o autor, foi a primeira vez que conheci o trabalho através do
professor José Bessa, durante uma etapa do curso Licenciatura
Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica – UFSC. É
impressionante ler um texto de 500 anos atrás e saber como e o que
aconteceu naqueles anos. Podemos descobrir as atrocidades que os
espanhóis cometeram com os Incas no Peru. O desenho é interessante,
pois ele consegue transmitir com muita precisão o que ele
testemunhou durante a sua vivência.
“Outra
mensagem que o desenho nos transmite enquanto indígenas é que a
cultura oral é muito importante, mas no mundo atual, o registro
escrito de tudo o que acontece no dia a dia da comunidade, os
rituais, a musicalidade, a culinária, os medicamentos tradicionais,
o movimento e a luta pela conquista dos nossos direitos é
fundamental, para que as gerações posteriores possam conhecer. Por
isso defendo o ingresso dos indígenas nas universidades, sabendo que
a formação acadêmica pode contribuir para concretizar esse
processo”.
Quando
seu colega guarani Eduardo Kuaray morreu, em novembro de 2014,
escrevi que a morte de um aluno jovem é, para o professor que a ele
sobrevive, como a morte de um filho: uma inversão, uma cilada do
destino, da história. Assim como existe pai órfão de seu filho,
existe professor órfão de seu aluno. Já sinto saudades da troca de
mensagens com Namblá. O coração, repleto de vergonha pelo Brasil
no qual vivemos, revela a impotência de dar um basta num crime que
se arrasta por cinco séculos.
Só
nos resta a esperança de que o desenho com sangue de Namblá
contribua para combater a intolerância e chegue ao séc. XXV, quando
quem será julgado por esses crime não será um pobre infeliz, mas a
sociedade que o armou. Com dor, mas com indignação e com a raiva de
Drummond.
P.S.
– Na terça-feira, 9 de janeiro, às 9 hrs da manhã, o Curso de
Licenciatura da UFSC realiza um ato em homenagem a Marcondes Namblá.
Agradeço as informações recentes e as fotos postadas por Marina
Oliveira, Clóvis Brighenti, Antonella Tassinara e Kerexu Yxapyry.
*
Jornalista
e historiador.
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