Ode
à minha família
* Por
Henrique Fendrich
Understand what I’ve become
It wasn’t my design.
Não
foi nada planejado, se eu tivesse pensado, se eu visse para onde as
coisas estavam indo, é bem provável que até tentasse evitar. Quem
é que gosta de ser tão diferente assim das pessoas que são sangue
do seu sangue, carne da sua carne? Não é justamente para essas
pessoas que todos nós recorremos quando nos fartamos do mundo? Não
são elas aquilo que se convencionou chamar de “porto seguro”? E
não são elas que nos dão forças para continuar? Pois imagine
então o que vem a ser alguém que não se sente parte da sua própria
família. Não, certamente eu iria evitar se estivesse ao meu
alcance, se soubesse o que viria.
Para
começar, eu deveria ter ido trabalhar com meu pai no escritório.
Ele trabalhava em escritório, e não era o único, tinha mais gente
trabalhando lá, os filhos dos outros começavam trabalhando lá, mas
eu nunca quis, achava aquilo tudo meio aborrecido, e então fui fazer
o que quis na vida, ou melhor, fui tentar fazer, porque não consegui
quase nada, e hoje eu até aceitaria um emprego de escritório se
surgisse, mas não surge. Fui fazer o que quis na vida, e saí da
cidade, a cidade em que todo mundo vivia há 150 anos, fui o único
que saiu, o único que não se ajeitou por lá mesmo, não arrumou
emprego em fábrica de móveis e nem foi cursar administração.
Já
então eu era o diferentão, o sujeito que fica calado nas festas de
aniversário, nos almoços de final de ano, aquele que alguém sempre
pega no pé, diz que está falando demais, quando todo mundo sabe que
mal abriu a boca. Ainda por cima, não bebia. E todo mundo bebe,
pode-se falar mesmo em um tipo de culto à cerveja, e eu não bebia,
e depois parei de beber refrigerante também, e era aquela
dificuldade saber o que é que podiam me oferecer, perguntavam se eu
comia carne, porque podia se esperar qualquer coisa de quem age de
forma tão diversa do usual.
Também não casei, nunca trouxe sequer uma namorada, não apresentei ninguém, e deve ter gente achando que sou gay, não tenho conteúdo para falar de coisas domésticas, cuidados da casa e dos filhos, e nem dos carros, não tenho carro, não sei dirigir. De política muito menos que eu havia de falar, eu que tenho umas ideias tão próprias que desagradam aos dois lados do espectro político, eu que fujo sempre dos dois lados, das paixões que são comuns a todos.
Se
houvesse outra pessoa da minha idade, com uma genética e uma
psicologia parecida, até pode ser que fosse mais fácil, só teve a
minha prima, ela é da minha idade, a gente brincava junto quando
criança, mas um dia ela cresceu, virou moça antes do que eu, e
ficou mais séria e se afastou. Aí eu passei sempre a procurar a
prima perdida nas primas que nasciam, e só nascia prima, nenhum
homem, brincava com elas quando eram bem pequenas, depois elas
cresciam e percebiam que eu tinha alguma coisa estranha, que não era
como os outros, e sentiam medo de mim.
E,
entretanto, foram todos sempre muito bons para mim, são pessoas boas
e generosas, sentem até a minha falta quando não vou a um evento,
sentem a falta até do abajur que eu me tornei. Pode ser que não
saibam lidar com alguém diferente, mas nem se pode culpá-los por
isso, pois tampouco sei eu lidar com a minha diferença. Se eu fujo,
se eu me afasto e se eu não vou, é unicamente para nos poupar
desses constrangimentos. Mas saibam que eu os admiro a todos, as
famílias que construíram, as carreiras que tiveram, a felicidade
que demonstram, esse carinho que vem fácil entre vocês. São a
família que eu gostaria de ter, e que não aproveito, por não
conseguir.
*
Henrique Fendrich é jornalista, escritor e pesquisador. Mantém a
“RUBEM”, única revista digital sobre crônica, e é autor dos
livros “Brasília quando perto” (2013) e “Deus ainda não
acabou com tudo” (2014), ambas coletâneas de crônicas. É
organizador do blog literário “Vida a Sete Chaves”. Também
escreve livros de história e genealogia, além de textos para os
jornais “Folha do Norte” e “Evolução”, de São Bento do
Sul/SC.
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