O
crucifixo de pedra: cantada ou assédio sexual?
* Por
José Ribamar Bessa Freire
O
cara tentou seduzir uma das minhas nove irmãs, usando um crucifixo.
Isso aconteceu em Manaus, há 60 anos. Na ocasião, as opiniões
sobre o sacrilégio se dividiram: assédio delituoso para uns,
paquera tresloucada para outros. O bate-boca local se antecipou em
seis décadas ao atual debate midiático entre, de um lado, o
Movimento Feminista #MeToo, nos Estados Unidos, e de outro, as cem
mulheres francesas que publicaram manifesto no “Le
Monde”,
com ampla repercussão no Brasil, comprovando que tudo que sucede em
qualquer parte do mundo já aconteceu no bairro de Aparecida.
Decidido
a ouvir agora os dois lados, enviei relatório a Oprah Winfrey e a
Catherine Deneuve, anexando depoimento da minha irmã que até hoje
guarda cicatrizes abertas. Indaguei-lhes se o uso do crucifixo de
pedra foi abuso sexual, o que é crime, ou apenas insistente paquera,
que não constitui delito. Vocês vão cair pra trás: ambas me
responderam, depois de lerem o relato que vai aqui resumido.
“Piróquia”
de Aparecida
O
cenário foi a Paróquia e, às vezes, simplesmente “Piroca” de
Aparecida na pronúncia do vigário americano, Father Hirsch, que se
achava o “o” do borogodó só porque nascera em Oconomowoc que
esbanja um “o” a mais. Anualmente, na última quinzena de
setembro, a “Piróquia” instalava barracas de madeira frente à
igreja e debaixo dos benjaminzeiros, ao longo da rua Xavier de
Mendonça, reservando a pracinha para o Bingo, com o objetivo de
arrecadar fundos para as obras da igreja. Na quermesse rolavam jogos,
sorteios, leilão, comida regional e música transmitida pelo
alto-falante.
O
veículo involuntário da - paquera ou abuso? - foi
justamente o “Serviço
de Amplificação A Voz Quermesse de Aparecida”
que cobrava uns cascalhos tanto pelos anúncios comerciais de
pequenas lojas, padarias, tabernas, bancas de tacacá e de rala-rala,
quanto pelos “telegramas no ar” - oferecimento individual de
música com mensagem endereçada, em geral, a alguém que se queria
namorar.
Tudo
começou na quermesse de 1958 ou 1959, quando o eletricista Gilberto
Bacurau enviou da banca de pastel da dona Dinoca, onde instalara seu
quartel-general, o seguinte telegrama:
- Alô,
alô! Alô, alô! Você que se encontra passeando nesse arraial
vestindo saia plissada azul-claro e blusa godê de alcinhas com
bordados florais coloridos, alguém que te ama desesperadamente te
oferece a melodia “O crucifixo de pedra”.
Naquela
Manaus de antanho, as moçoilas só usavam dois tipos de
indumentária. No arraial, metade delas trajava vestido tubinho e a
outra metade saia plissada e blusa godê. Era uma espécie de farda.
Como reconhecer, entre tantas, a destinatária? Pela cor. Tinha saia
de toda cor. No entanto, para complicar, duas delas vestiam
azul-claro: minha irmã Lena e Dodora, minha prima. Pareciam gêmeas.
O impasse foi resolvido por um detalhe sutil: a blusa da Dodora,
felizmente, não era bordada com flores, mas com frutas. Portanto, o
alvo estava identificado. Ou a vítima?
Só
entenderá o termo “vítima” quem ouvir as duas versões: em
espanhol e em português. A original “El
crucifijo de piedra”
é do mexicano Miguel Aceves Mejia, o “Rei do Falsete”, que
gravou mais de duas mil canções, entre boleros, rancheiras,
fandango, rumba, corrido, guaracha e todo tipo de música folclórica,
algumas delas apreciadas no mundo inteiro, como Cucurrucucu
Paloma, Cielito Lindo, Malagueña, Dónde estás corazón.
Já
a versão em português é do cantor goiano Miltinho Rodrigues, “o
Trovador do Brasil”, representante do estilo romântico-sertanejo,
com voz potente que lembra a do Agnaldo Timóteo. Ele teve música
gravada posteriormente por Chitãozinho e Xororó, de quem foi
precursor. “É um martírio gostar de alguém que vive nos braços
de outro” – cantou em Martírio,
um de seus sucessos junto com O
Crucifixo de pedra.
Cantada
na quermesse
Mas,
afinal, por que o oferecimento de uma música romântica poderia ser
considerado delito? Espera, leitor (a), que te conto. São dois
níveis de análise: primeiro é preciso avaliar a letra, depois sua
execução na quermesse.
Na
letra, o narrador relata sua paixão por uma moça, de quem se sentia
dono, que dele se despede jurando que voltaria. Desapareceu. Quando
os dois se reencontram sozinhos, numa noite silenciosa e enluarada,
na porta da igreja, se olham, sem falar, até que ela lhe diz com
sinceridade:
-
Me esquece, não quero te enganar.
Ele
força a barra, agarra e aperta o objeto de sua paixão, com a
desculpa de que só fez isso para detê-la. Ela resiste. Com o
orgulho ferido, ele acaba soltando sua presa e fica sozinho,
soluçando. Culpabiliza a mulher por seu sofrimento e ainda se faz de
vítima. Sua dor de corno é tão pungente que o crucifixo de pedra,
lá da torre da igreja, não resiste e também se põe a chorar.
Quem
não se comoveu com esse choro foi Oprah Winfrey, para quem a letra
expõe claramente uma agressão, porque o protagonista não aceita a
vontade da moça: “A relação entre homem e mulher deve ser
baseada na igualdade, no respeito e na reciprocidade. Ela tem o
direito de não querer. Ele não podia agarrá-la à força. O
crucifixo chorou com pena do rapaz, mas se fosse a imagem de Nossa
Senhora Aparecida, talvez ela chorasse por todas as mulheres
violentadas. São muitas. Basta consultar o site Macholândia”.
-
“Epa!” - diz Catherine Deneuve - “o estupro é crime, mas é
diferente da paquera insistente, do galanteio e da sedução. Os
homens têm o direito de flertar livremente com mulheres e vice
versa. Querer anular o desejo é um retrocesso que nega o combate
pela liberdade sexual, uma conquista da década de 1960 que não pode
ser satanizada pelo puritanismo obscurantista”.
Oprah
retrucou que “erra quem diz que denunciar a violência afeta a
liberdade sexual. A violência não é um flerte exagerado. É
crime”. Dela discorda Brigitte Bardot que considera hipocrisia essa
onda de denúncias, porque – segundo ela - “algumas mulheres que
se queixam do assédio na indústria cinematográfica muitas vezes
tentam seduzir os produtores para conseguir um papel”.
A
polêmica continua quente. Nem sempre as fronteiras de tais
abordagens estão bem delimitadas – escreve o psicanalista Contardo
Calligaris em artigo na Folha de SP (18/01) – Estupros,
assédios e paqueras. Ele
reconhece que muitos homens “podem estuprar por idiotice – porque
acham que a mulher vai gostar”. Avalia que a carta das francesas em
defesa da paquera não é educativa no atual contexto, porque
contribui para manter “a maioria dos homens na sua perigosa
idiotice”.
Apesar
das divergências, as duas correntes acabaram concordando no final,
de que houve uma tentativa de emprenhar minha irmã pelo ouvido. Ela
foi auditivamente violentada. Eis a razão: Oprah e Deneuve ouviram a
música e souberam que era tocada trinta vezes por noite. Fizeram as
contas. Cada vez que toca, o cantor entoa 13 vezes o falsete em
“uuuuuuuuu” ou em “iiiiiiiiii”, multiplicando por 30 dá um
total de 390 falsetes por noite, ou 5.850 nos quinze dias de
quermesse, crime para o qual só Gilmar Mendes ousaria conceder
habeas-corpus e isso se Bacurau fosse rico, muito rico, mas muito
rico mesmo.
Minha
irmã guarda até hoje o trauma, compartilhado com minha amiga
Charufe Nasser, a quem vi – ninguém me contou – na quermesse de
São Sebastião, chorando aos borbotões, sentada ao meio-fio da
calçada do Teatro Amazonas, enquanto escutava “El
crucifijo de piedra”
e chorando uuuuuuu foi até sua casa na rua Ferreira Pena. Fico até
arrepiadinho só de lembrar. Passa o dedo no meu braço e vê como os
cabelinhos estão eriçados. Acho a música linda, o falsete também.
Mas 5.850 vezes não dá.
De
qualquer forma, o pretendente Gilberto Bacurau, morto em maio de
2017, tinha razão: a alma de minha irmã não era dele, era dela,
que decidiu compartilhar com outro alguém de sua livre escolha.
*
Jornalista
e historiador.
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