quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Quinze anos

* Por Mara Narciso
 
Uma década e meia, já. Ninguém faz bolo com velas para homenagear alguém desaparecido há quinze anos. Debutar é apresentar-se pela primeira vez na vida social. O oposto daqui. No dia 28 de janeiro de 2003 Milena Narciso, a minha mãe, saiu do nosso convívio. Apenas com detalhada retrospectiva dos fatos revejo os sinais sutis, de coisa pouca, quase nada, que indicavam que algo sério acontecia dentro do seu cérebro. Contava daquela impressão que lhe acontecia, talvez à mesma hora da manhã, uma dor de cabeça, uma leve fraqueza. Seria uma hipoglicemia? “Vou comer alguma coisa antes de vir o sintoma. Talvez não aconteça”. O médico cardiologista falou que seria stress. Foi quando houve o estranhamento de não saber onde estava. Falei: Mãe, você passa de carro e no sentido inverso. Agora, a pé e voltando, a avenida lhe pareceu outra. E a irritabilidade? Perdeu a serenidade. Então, a reprise do desconhecimento do lugar, precedido pela dificuldade em ler e escrever. Trocava as palavras. Não conseguia contar um fato, desconhecia pessoas próximas. A tomografia mostrou uma “mancha” cerebral, talvez uma isquemia. “Eu não acredito nisso. Tem ‘uma coisa’ aqui dentro”. Então, ela passou mal, teve uma forte dor de cabeça, que simulava um AVC hemorrágico. Foi submetida à cirurgia cerebral. A biópsia deu negativa. Isso nos encheu de esperança. Recuperou-se, voltou a andar, foi a Belo Horizonte, fez a Ressonância Nuclear Magnética, e o tumor estava lá, esparramando-se. Milena falou: “se tenho uma chance, eu quero tentar”. Da segunda operação - duas cirurgias em 19 dias -, ela não mais voltou a si. Teve outra hemorragia cerebral, entrou em coma profundo, ficou no respirador e morreu quatro dias depois, aos 68 anos.
 
Mãe foi uma mulher com fácil raciocínio matemático, observadora, expressando-se com facilidade, lembrando-se de cada palavra e circunstância. Esquerdista, contida, não conformada, fazia o gênero rebelde calada. Após o ensino médio, fora da escola por 15 anos, voltou a estudar, e, após um ano de cursinho passou no vestibular, formando-se aos 40 anos na 1ª turma da Faculdade de Medicina do Norte de Minas. Deixou a turma jovem para trás. Seu currículo foi o melhor, recebendo o Prêmio Carlos Chagas. Mudou a vida dela e a nossa. Trabalhou como ginecologista e obstetra durante 28 anos na Santa Casa de Montes Claros. Estava ativa, fazendo cursos, estudando, e apta para mais alguns anos de profissão, mas o Glioblastoma Multiforme, tumor dos tecidos de sustentação do cérebro, explodiu e a matou em 32 dias.
 
Milena me mostrou muitos bons caminhos. Ler, estudar, aprender era com ela. Responsável, cautelosa, humana, foi uma mulher vitoriosa, aquela pessoa confiável, que tinha crédito total comigo e os demais. Quer vitória maior do que esta? Só mentia quando afirmava gostar dos três filhos de maneira igual, pois gostava mais de Helder. Inesquecível como quase toda mãe, pelo menos duas vezes ao ano, nos aniversários de nascimento e de morte eu faço minhas lamentações, rendo-lhe homenagens e cito seus feitos. Foram muitos e não conseguirei lhe fazer justiça, pois acabo me lembrando dos mesmos fatos. Passou exemplos e ensinamentos. Um deles: se um alfinete não é seu, nem olhe, largue onde está.
 
Apreciadora de viagens, Milena era pessoa de hábitos simples, gostava de comer degustando e nada a atrapalhava de dormir.  Era a primeira a chegar para acudir quem dela precisasse. E chegava resolvendo. A minha mãe foi sim, uma mulher inteligente e bonita, coisa que não deveria ter - pois não sou uma criança e não confundo as coisas -, mas tem tudo a ver com a bondade que ela distribuía.


* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

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