A
carneação
* Por
Alcides Maya
Iam
carnear. A rês, vaquilhona osca de uns dois anos, boa de carnes,
comprada ao Bento, já estava presa pelas aspas; escolheram o Jango
para matá-la; porém os cinchadores não conseguiam esticar
convenientemente os laços e a cena, complicada pelos acidentes do
terreno, ia além da expectativa, impacientando a todos, gulosos de
carne fresca a chiar ao fogo.
Embolada,
a cabeça gacha, de um lado, a língua pêndula, a babar-se em longos
fios prateados, ela berrava escornando desajeitadamente o ar. Jango
Sousa, que a rodeava, de mangas arregaçadas e de faca em punho, a
bainha de couro preto tenteado a bater contra o tirador de vaqueta,
reluzente ao sol a folha bem afiada, tinha no rosto, não obstante o
hábito, um ligeiro rictus desmentindo-lhe a fleugma. E não se
ajeitava, adiantando-se, retrocedendo, passando por debaixo das
tranças do couro, indo a ferir e fugindo, à espera de momento
oportuno para bem golpear. A uma ordem sua, um dos laçadores passou
a trama ao tronco de uma árvore; o outro paleteou o cavalo: as duas
cordas vibraram, tensas, no espaço, e a novilha parou, firmando as
patas na grama revolta. Decorreu um instante de suprema imobilidade e
apenas leves frêmitos percorriam os laços, animando-os de
ondulações serpentinas. Queda, a terneira deu azo a que se lhe
conchegasse o gaúcho, desgarronando-a, seguro à ponta da cola. Um
dos cavalos, arisco, desviando-se, suxou o laço e a osca, apoiada na
perna sã, de pelo desenrugado sobre a giba, à arqueadura da
espinha, atirou uma violenta marrada, e só depois do cavaleiro
dominar a besta foi possível a sangria. Mas, se o homem medira com
certeza o jarrete, errou no golpe ao pescoço: ferida, a vaca ainda
se manteve em pé, balouçando os cornos entre os laços remitidos e
tentando escoucear com a perna retalhada, cujos músculos vãmente
retesava; e só ao tirão seco de um dos ginetes abateu, escabujando,
um jorro de sangue borbulhante. Devia-se renovar o corte;
preparava-se já para fazê-lo Jango Sousa; porém Miguelito, que
despira, num ápice, o casaco, achegou-se com surpresa de todos, pois
não o conheciam, curvou-se sobre o corpo estertorante e, friamente,
suavemente, afundou-lhe o facão no sangradouro, torcendo-o para
tassalhar o músculo cardíaco. Era decisivo, esse: à dor,
convulsou-se a vítima num sobressalto de morte, encolhendo-se toda,
com um mugido soluçado, num respiro ortopneico de ar. As bordas
sangrentas do talho, unindo-se, apertaram a lâmina cravada, cujo
cabo repuxou a mão trigueira que o premava com os dedos recurvos,
como grampos. Arrancada a folha enrijecida, gotejante, saiu ringindo
nas cartilagens espedaçadas, de onde, mais grosso, aos coágulos,
golfejou um resto de cruor. Limpou-a Miguelito passando-a algumas
vezes no couro arrepiado: luzia-lhe cerrada, por entre os lábios
entreabertos, a dentadura forte, muito alva; e saíra-lhe à cara o
gozo íntimo, inconscientemente feroz, algo de sensualidade profunda,
ancestral e sinistra. A novilha, entretanto, agonizava, extinta a
consciência num último impulso baldado de fuga espavorida.
Sacudiu-a o derradeiro arquejo; inteiriçou-se, rígida; a língua,
de lixa, esbranquiçada, caiu mais, para fora, endureceu de um lado e
os olhos foram-se embaciando aos poucos, refletindo na retina, como
em uma guache minúscula, o espetáculo da planície com os salsos
próximos e a figurilha do matador, inclinado, o braço estendido, a
suster a arma, em que os raios de luz morrediça do ocaso deixavam
agora, vez por outra, postremos revérberos. Um cachorro lambia
docemente, às costelas, o sangue colado à pele, e, sobre a
sangueira que empapava as ervas, o leitão de um dos carreteiros
fuçava cheio de voracidade, coinchando. Foi além, avizinhou-se,
introduziu o focinho, de cerdas úmidas de grúmulos rubros, na
golpada hiante, bafejando-a, arreganhando-a, remorado a princípio,
numa garícia de gula mansa, depois rapidamente, a grunhir, sôfrego,
às cabeçadas. Espantaram-no para tirarem o couro. Os tecidos,
quentes, riscados, fundo, pelas facas, estremeciam ainda, meio vivos;
fêveras crispavam-se; havia repuxamentos demorados de músculos,
remexer, contrações de nervos...
Uma
irradiação postreira incendiava de todo cabo, no poente, as nuvens
amontoadas; era mais terreno, atmosfera acima, atmosfera abaixo, o
girar dos corvos contornando a carretama; adensava-se, da parte do
arroio, o muro de sombra das árvores, de ramaria fundida na mesma
soturna massa, impenetrável ao esguardo; e, à aproximação da
treva, subia de ponto no acampamento o resfôlego de prazer da gente
solta. Na praça formada pelos carros, acendera-se uma fogueira;
negros, caboclos, homens brancos apertavam-se ao redor, atraídos
pelos assados; manuseavam-se espetos; o bucho da rês, arrojado aos
cães, exalava um cheiro acre de ervas esmoídas; e continuamente
ressoava, entre risos, o lique-lique seco, áspero e frio das lâminas
das facas passadas com rapidez nas chairas de aço.
[...]
(Ruínas
vivas,
capítulo VI, 1910)
*
Jornalista,
político, contista, romancista e ensaísta, membro da Academia
Brasileira de Letras.
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