A rima indispensável
* Por
Pablo Uchoa
Quando eu era adolescente e,
portanto, romântico, acreditava que para escrever era preciso
exercitar a solidão. Culpa do amigo Lira Neto, que também era um
moleque mas me avisava, com ar de reticências:
– Somente com um bocado de
solidão se faz um artista de bom tamanho...
E eu, que naquela época nem
cerveja bebia, passava as noites na base do café expresso, ficava
maravilhado: – Então a dor é uma dádiva!
Eu achava que sofrer ia me
revelar horizontes, “a dor é inalcançável”, escrevia.
Exercitava a parolagem e a
punheta.
O primeiro fora que levei de
uma menina, ou melhor, nem levei, porque era devoto da solidão
poética, soquei os trapos na mochila e parti. Escolhi uma praia
deserta e passei umas férias escolares devorando cada linha de
Marina Colasanti e Lygia Fagundes Telles, enfiado num quartinho de
pensão que se elevava sobre um rio que me enchia os olhos – fim de
tarde, a maré alta, eu reescrevia, imitava descaradamente aqueles
contos que havia lido de manhã, e curtia feito um velho esgotado
minha dor de cotovelo de adolescente covarde. E achava que fazia
literatura.
Anos depois, a garota que foi
razão do meu transtorno zombou de mim:
– Achava lindo aquele menino
que andava de lá para cá e nem conseguia pronunciar as palavras,
por isso escrevia – ela me decifrou.
Mas quem dizia isso era um
mulherão um palmo mais alta que eu – e ela estava ao meu lado como
veio ao mundo, os cabelos desgrenhados, as bochechas apoiadas no meu
peito e os dedos dos pés roçando a pontinha do meu calcanhar, ah!,
meu passado vingado!
Eu devia achar que as palavras
habitavam um mundo que não era esse, que viviam num jardim do éden
onde os poetas entravam desacompanhados e caçavam, não borboletas
nem passarinhos, caçavam histórias, caçavam linhas.
Meu jardim suspenso desmoronou
impiedosamente quando me apaixonei de verdade, eu amava mas sofria
feito um padre, que maravilha era gozar e acordar alquebrado no dia
seguinte, porém vinha junto aquele martírio, trepar era um prazer
pequeno-burguês.
Mulher valente, aquela, nunca
mais arrumo amor teimoso que resista aos meus arroubos de
imaturidade. Esperou anos até que eu resolvesse essa equação da
minha adolescência, chegasse à conclusão de que não, meu chapa, o
amor não é pequeno-burguês. Amar é prerrogativa do autor, o
narrador é um personagem como qualquer outro.
Lancei ao chão todos os mitos
que eu cultivava quando menino, toda moral, todo romantismo bocó que
eleve a arte a algum ponto intangível. Não guardo saudade.
Prova de minha iconoclastia (e
de minha decadência), hoje empenho a literatura em utilidades bem
menos nobres, como alguns poemas assanhados que andei dedicando às
meninas de pileque nos bares da Vila Madalena. Foi numa dessas
noitadas que um poeta itinerante voltou ao tema da solidão, e
definiu:
– Solidão é viver neste
mundo vazio.
Pensei comigo, “vazio”? E
que haverá de tão misterioso no teu universo solitário, poeta, que
eu não encontre neste meu, tão mundano e ordinário?
– Vazios são os estômagos
do Brasil – respondi.
Pão, poeta. É disso que o
mundo precisa. Pão-tesão-chão-ereção.
As únicas rimas
indispensáveis ainda estão nesse mundo.
(*)
Cronista,
vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute
for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do
livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed.
Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.
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