quarta-feira, 31 de janeiro de 2018


Na Porta do Céu

* Por Mara Narciso

Aos seis anos de idade, em 1961, eu fazia o então chamado curso pré-primário no Colégio Imaculada Conceição, tradicional colégio de freiras em Montes Claros. As irmãs belgas eram as proprietárias, mas havia freiras brasileiras, algumas delas, pessoas carentes que não tinham outro modo de ascensão social que não fosse a vida religiosa. Muitas tinham apenas o curso primário e davam aulas de religião. Eu era pobre, mas os colegas vinham de famílias abastadas, de fazendeiros e outros próceres da comunidade montes-clarense.

Meu pai tinha trabalhado como contador técnico em uma representação de automóveis Volkswagen e depois foi proprietário de uma loja de roupas. As minhas colegas estudavam música no conservatório, tocavam piano e moravam em casas de dois andares no centro da cidade, com enormes quintais com pomares que ocupavam todo o quarteirão, além da piscina. Eu as frequentava, mas elas não iam ao nosso pequeno apartamento (coisa rara na época), onde morávamos e pagávamos aluguel.

Tínhamos aulas de religião no primeiro horário e rezávamos todos os dias. As irmãs traziam cartazes com passagens da Bíblia. Havia um quadro sobre o dilúvio, que muito nos amedrontava, e outro, também apavorante, que representava o inferno. Eu gostava muito de estudar, mas não gostava tanto do colégio, porque me sentia pouco a vontade, porém permaneci nessa escola por dez anos.

Havia missa para os alunos diversas vezes por semana. Íamos à capela rezar e entoar músicas religiosas depois do recreio. Na entrada da igrejinha havia uma cuba de água benta, na qual molhávamos a ponta dos dedos e nos persignávamos com tal líquido. Eu me sentia muito contrita, e rezava com muita fé. Havia sessões de confissão e de comunhão para os alunos mais velhos.

Mas, neste ano específico, eu participei de duas peças de teatro organizadas pelas professoras. Ah, como eu amava o teatro! Ficava como louca quando tinha oportunidade de ver as marionetes, ou alguma peça levada por pessoas de fora do colégio.

Um dia resolveram fazer uma representação com os alunos. Eu era considerada desinibida e fui escalada para ser o Lobo-Mau na história de Chapeuzinho Vermelho. A roupa marrom com rabo e tudo me foi emprestada pela escola. É claro que, tão menina, não sabia representar, mas consegui chegar ao final.

A formatura no mês de dezembro foi uma grande festa. Ensaiamos muitas vezes a peça: “Na Porta do Céu”. Muitos personagens desfilariam suas vidas e seriam avaliados por São Pedro, que, pra lá de austero, analisaria cada história antes de assinar o passe livre. Quase não deu para participar do grande dia, porque tive catapora, mas me recuperei a tempo.

No transcorrer da peça, algumas pessoas já tinham entrado no céu, e eu estava na fila tentando fazer o mesmo. São Pedro, cujo papel foi representado pelo Senhor Paulo César Gonçalves de Almeida (tenho fotos) que é o Digníssimo Reitor da UNIMONTES, permanecia postado à porta, bradava palavras de ordem, e depois de uma breve conversa com o interessado, o mandava entrar. Estava demorando, e eu era a última pessoa da fila. Quando chegou a minha vez, todos tinham entrado: meninas com suas bonecas, mulheres, homens e anjos e eu lá fora esperando. Então São Pedro me olhou severamente e disse:
- Não, você não pode entrar no céu, Rugelina, porque está com o rosto pintado de “rouge”. Quem usa maquiagem fica fora do céu!

As cortinas se fecharam debaixo de uma salva de palmas. Depois, novamente se abriram para que os alunos, meninos e meninas de seis e sete anos pudessem receber os aplausos da plateia, os nossos pais em sua maioria.

No meu cantinho no palco, como única criança excluída de entrar no céu, eu acabei de aprender valores e arbitrariedades. Afinal, mais importante do que o interior das pessoas, a parte externa determinava, e determina quem vai entrar onde.


* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”


Um comentário:

  1. Que pena que essa lição, tão dura e definitiva, você tenha aprendido tão cedo! Abraços, Mara.

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