Meu
momento de traficante
* Por
Urda Alice Klueger
Em
setembro de 1996, eu e minha amiga Lúcia viajávamos pelo Noroeste
da América do Sul. Tínhamos chegado a Cartagena, no Caribe
colombiano, e dali pretendíamos seguir em direção à Venezuela. Já
tínhamos uma rota traçada, passando por Mérida e Coro, em direção
a Caracas, mas daí surgiu um probleminha: para irmos à Venezuela,
teríamos que seguir por uma estrada onde, só naquela semana, a
guerrilha colombiana já havia queimado dez ônibus. Para não termos
problemas na estrada, nossos planos balançaram. Que fazer? Fomos
estendendo nossa estada na linda cidade de Cartagena, pensando no que
fazer, até que resolvemos mudar de rumo: ao invés de seguirmos de
ônibus para a Venezuela, tomaríamos um avião para Aruba, e depois,
de lá, voaríamos diretamente a Caracas.
Já
estávamos a quase vinte dias viajando pelo Equador e pela Colômbia,
fazendo a rota dos europeus e dos israelenses (brasileiro não viaja
pela América Latina), ficando nos mesmos albergues que eles, que vêm
aos milhares conhecer a América. Europeu não gosta muito de banho
e, quando em viagem pelo terceiro mundo, não gosta muito de trocar
de roupa. Convivíamos com essa tribo há quase vinte dias, e
tínhamos adquirido alguns hábitos, como o de usar a roupa sem
passar e o de andar desleixadas com a aparência, embora não
dispensássemos o banho sem o qual brasileiro não sabe viver. Além
disso, minhas mochilas de lã de lhama estavam sujíssimas de tanto
serem arrastadas pelas rodoviárias e albergues.
Chegou
a manhã de viajarmos para Aruba. Sabíamos que lá era primeiro
mundo, e demos uma caprichada na aparência: Lúcia vestiu um vestido
caribenho recém comprado; eu encarei um short branco. Achamo-nos
muito chiques diante da tribo europeia, e fomos pegar o avião, que,
em mais ou menos meia hora nos levou até Aruba.
Morro
de rir quando me lembro. No momento em que nosso avião chegou ao
aeroporto daquela ilha paradisíaca (antiga colônia holandesa - hoje
país, com moeda própria, língua própria, bandeira própria),
chegaram também outros dois aviões, um da Holanda e um dos Estados
Unidos.
Desembarcamos
todos ao mesmo tempo e atulhamos a sala de emigração de Aruba. O
pessoal dos outros aviões vinha chiquérrimo, tinha comprado coisas
novas, de grife, para aquelas férias. Pensei no meu pobre short
branco e na minha camiseta muito usada e vi a diferença, e ela ficou
muito maior quando reparei nas malas dos passageiros dos outros voos:
eram modernas, elegantes, novas: contrastavam violentamente com as
minhas sujas mochilas de lã de lhama. Corajosamente, fiz de conta
que não tinha visto nada daquilo e continuei na fila que não
andava.
Pois
é, nossa fila não andava. As filas do pessoal dos outros voos iam
diminuindo rapidamente, e nós não saíamos do lugar. Lúcia e eu
nos cutucamos, e passamos rapidinho para uma outra fila. No mesmo
instante um guarda percebeu:
-
Pessoal do voo da Colômbia tem que ficar na outra fila!
Entendemos
logo em seguida o porquê da diferença. Enquanto os holandeses e
estadunidenses tinham seus passaportes carimbados rapidamente, quem
vinha da Colômbia era minuciosamente revistado.
Chegou
a nossa vez da revista. Revistaram e revistaram, e não acharam o que
estavam procurando. Éramos casos especiais, e fomos introduzidas
numa sala especial. O cara da imigração nos crivou de perguntas:
tínhamos reservas de hotel? Não, não tínhamos. O que viéramos
fazer em Aruba? Passear. E por aí afora.
Dei-me
conta, então, da nossa situação. Para Aruba, parecíamos umas
maltrapilhas, com aquelas roupas simples e aquelas mochilas de lã.
Além de maltrapilhas, portávamos passaportes brasileiros e vínhamos
da Colômbia, e não tínhamos sequer pouso certo em Aruba. Estava
claro que só poderíamos ser traficantes. Onde estava a cocaína?
Senti a barra pesando nas perguntas do homem, que nos amarrava a cara
acusadoramente, e então achei melhor ser muito convincente:
-
Moço, só viemos conhecer a ilha. Não vamos causar nenhum
problema!
Não
havia, mesmo, o que ser achado que nos comprometesse, e senti o
contragosto do cara ao nos liberar de má vontade. Quase que a gente
não entra em Aruba! Tive o meu momento de traficante!
Blumenau,
10 de Maio de 1997.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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