sábado, 20 de janeiro de 2018

Prima donna canarinho


Por Fernando Mariz Masagão


Na semana passada, escrevi neste espaço um texto sobre os efeitos da expectativa em torno do primeiro jogo do Brasil na Copa do Mundo da Alemanha . Disse na oportunidade que o clima era de otimismo e de um patriotismo efervescente, quase delirante. Apontava o fato de apenas manifestarmos nosso amor ao Brasil quadrienalmente, condicionados aos escassos motivos de orgulho, sendo um deles – e o mais forte de todos – a seleção brasileira. Escrevi supondo ser esta uma característica bastante peculiar ao nosso povo. Mas o brasileiro é, em verdade, muito esquisito. Passados dois jogos da primeira fase da competição, as bandeirinhas continuam a tremular, firmes e fortes, numa demonstração de outra característica nossa: a fé.
Já o otimismo...

Acho que não existe uma pessoa no país que não vá classificar as duas primeiras exibições da seleção como decepcionantes, para dizer o mínimo. O que se viu em campo foi um amontoado de estrelas batendo a cabeça, cada jogador tropeçando no salto alto do outro. E ficamos todos espantados ante o futebol apresentado, digno de uma seleção de Lucerna.

Eu não sei se vocês concordam, mas outra característica nossa das mais evidentes é o fato de sermos uma imensa nação de “Murphies”. O brasileiro é um povo acostumado a matar três ou quatro leões por dia. O que tiver para dar errado não só vai dar errado, mas vai se desenrolar da pior maneira possível. E confirmando este dado antropológico da mais ilibada cientificidade, a Argentina resolve mostrar no seu segundo jogo que dispõe de um quadrado mágico efetivo e aplica uma goleada histórica em cima de Sérvia e Montenegro - que se não é uma Croácia, também não é uma Austrália. E aqui começou o delírio oposto. Narrarei um fato que me parece bastante ilustrativo.

Sucedeu que no dia seguinte ao jogo da Argentina, numa seção em que o Estadão destina para duas personalidades opinarem sobre algum assunto relacionado à Copa, foi perguntado “se havia pintado o campeão ?”, se a Argentina levaria o caneco, dado, creio eu, a discrepância do futebol apresentado em relação ao resto. Como o espaço em questão sempre apresenta opiniões contrárias sobre o mesmo tema, de um lado escreveu Andrada, goleiro argentino que chorou ao levar o milésimo gol de Pelé e que, evidentemente, respondeu afirmativamente. Do outro, Martinho da Vila respondia que não, que a Argentina não ganharia nada. E sapecou alguns argumentos dignos de nota. Dizia o talentoso compositor que qualquer seleção de tradição teria a obrigação de enfiar seis gols num time destroçado por disputas étnicas. Que a goleada nada representava. Não via o nosso Martinho, enfim, nada de anormal num time marcar seis gols num mesmo jogo de Copa do Mundo. E completava, entre outros argumentos que agora não me recordo, que seu time já havia goleado outra equipe por 14 a 1 e nem por isso haviam faturado o torneio disputado na Vila.

Bom, fui eu relatar esta anedota a um amigo meu, já que o assunto na mesa era o jogo da Argentina e me deparei, antes que pudesse contar o artigo do Martinho para o Estado, com uma reação indignada, quase furiosa. Foi novamente dito que a Servia e Montenegro era uma equipe sem tradição, em meio a uma guerra intestina; que o cão que ladrava agora não passaria das oitavas de final; que o Brasil golearia a Austrália e demonstraria que a pressão exercida pelo mundo inteiro em cima do escrete havia passado; sem contar a superioridade do selecionado croata que havia marcado muito bem e era muito firme taticamente. Só não foi apresentado como argumento cabal uma goleada histórica como a do Martinho da Vila (que, suponho, deve jogar bem melhor que meu amigo).

Veio, então, o esperado segundo jogo. Entre muitas jogadas bisonhas e tristes, as piores foram protagonizadas pelos dois Ronaldos, que nós sabemos serem craques do mais alto nível. O Ronaldão furou uma bola que quase o fez cair de bunda no chão. O Ronaldinho Gaúcho PISOU literalmente na bola e de fato foi ao chão. O Brasil fez mais um papelão nesta Copa. E a imprensa só noticiou uma “melhora” no desempenho do time porque o Fred fez aquele golaço e esticou um pouco o marcador . E nos classificamos com a certeza de que é mera questão de tempo até a seleção engrenar. Esclareça-se que eu não faço coro com a ala mais fanática da torcida que exige de seus super craques show de bola em toda partida. Nem acho que um placar magro simbolize que uma equipe jogou bem ou não.

Mas a seleção, por todo seu potencial, está fazendo feio mesmo. E resta-nos perguntar a questão crucial: que catzo está acontecendo? Ponha o time no papel e se constatará que as performances brasileiras constituem-se numa anomalia futebolística. Vejamos o ataque: Ronaldo, Ronaldinho, Kaká e Adriano. Os laterais são ninguém menos do que Cafu e Roberto Carlos. Atrás temos o goleiro do Milan, Lúcio, Zé Roberto, Emérson... No banco: Robinho, Fred, Juninho Pernambucano, Mineiro. Até nosso goleiro reserva, Rogério Ceni, é extraordinário. Mas não funcionou. Já foi provado.

Então o que acontece? Acontecem dois problemas, um de ordem tática, outro de ordem psicológica. O primeiro resume-se ao seguinte: Parreira. Á exceção do ataque, a seleção reserva deveria estar em campo. Cafu e Roberto Carlos estão velhos, jogando burocraticamente atrás e sem conseguir criar ligação com o ataque. No meio é evidente que Mineiro e Juninho poderiam dar sangue novo ao time (deveriam pelo menos ser experimentados). No gol não vou nem comentar. Acho que nem a mãe do Dida o prefere ao goleiro são-paulino. No ataque, com as opções do banco, o Parreira deveria desencanar dessa veleidade babaca de quadrado mágico porque a única mágica conseguida até então foi deixar o futebol brasileiro quadrado. Adriano e Ronaldo cumprem a mesma função. Não podem jogar juntos. ambos são pesados. Devem ser alternados durante os dois tempos. E é claro que Ronaldo deve jogar. Por mais fora de forma que ele esteja, sempre há a possibilidade de ele tirar um coelho da cartola (crédito que não dou a Adriano). Mesmo com o risco de um japonês o confundir com a bola e chutá-lo. Inclusive acho que o estão usando injustamente de bode expiatório, mesmo porque o time tem técnico - que é o responsável pela escalação. O Ronaldo merece mais respeito.

Já a questão psicológica é mais complicada. Desde a Copa de 70 que a seleção canarinho é uma Prima Dona. Essa instituição nacional é um organismo vivo. No seu camarim devem ter frutas frescas, toalhas brancas e sais. Há que afagar-lhe o brilho, mas há que cutucar também seus brios, sempre. Se não, corremos o risco de perdermos a Copa com o melhor time da competição, proeza que só mesmo nós conseguimos (vide 66, 82, 86). Do jeito que foram os treinos-show da seleção, com público pagante, mulheres histéricas, europeus histéricos, amistosos marcados para goleadas; do jeito que a imprensa nacional e internacional noticiava cada assadura no bumbum das estrelas; diante da certeza propagada por todo mundo (inclusive nossa comissão técnica) de que o Brasil perder seria absurdo, diante de tudo o que estamos testemunhando, só mesmo o talento individual de nossos craques pode nos levar adiante, pelo menos é o que está acontecendo. Isso se não esbarrarmos na Argentina pelo caminho, que além de terem muitos talentos individuais, estão jogando como um time - muito embora em clássico a história seja sempre outra. Mas até lá viveremos este amor esquizofrênico, historicamente calcado em decepções e júbilo.

Na verdade, é pena que, como diz o ditado, as pessoas que realmente entendem de economia, política ou futebol estejam muito ocupadas dirigindo táxis, bebendo nos bares ou escrevendo crônicas.

*Fernando Mariz Masagão é músico, dramaturgo, poeta e colaborador de publicações online sobre arte, com crônicas e críticas musicais. Guitarrista e vocalista de bandas de rock'n'roll, tem formação clássica vigorosa, em cursos de regência sinfônica, apreciação musical e instrumentação.   




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